Divagar divagarinho

Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
Visite:  ||  Instituto Humanitas Unisinos - IHU.  ||  Religión Digital  ||  Site do Vaticano  ||  Agencia Informativa Latinoamericana S.A.  ||  Radio Reloj  || 
Creative Commons License Powered by Blogger

Arquivo de postagens: dezembro 2006   janeiro 2007   fevereiro 2007   março 2007   abril 2007   maio 2007   junho 2007   julho 2007   agosto 2007   setembro 2007   outubro 2007   novembro 2007   dezembro 2007   janeiro 2008   fevereiro 2008   março 2008   abril 2008   junho 2008   julho 2008   agosto 2008   setembro 2008   outubro 2008   novembro 2008   fevereiro 2009   abril 2009   maio 2009   fevereiro 2011   março 2011   junho 2011   março 2017   abril 2017   maio 2017   junho 2017   outubro 2017   abril 2018   agosto 2018   setembro 2018   janeiro 2019   abril 2019   maio 2019   junho 2019   setembro 2019   novembro 2019   dezembro 2019   janeiro 2020   fevereiro 2020   julho 2020   agosto 2020   setembro 2020   outubro 2020  



24 de dezembro de 2019

 

Quem me dera

As minhas decisões não são um compêndio da doutrina cristã só porque eu sou católico, nem são um modelo a ser seguido ou, pior, um padrão a ser adotado (!), sejam as decisões ruins, sejam as boas, ou sejam as duvidosas.

Um exemplo de decisão duvidosa que eu tomei foi amar sem ser correspondido. É uma "decisão" meio gaiata, porque no fim das contas eu fiz isto a vida inteira, amar sem ser correspondido, querendo ou não. Portanto a decisão não foi tanto amar sem ser correspondido, mas sim continuar a amar mesmo sem a menor expectativa de que eu venha a ser correspondido (embora mantendo uma esperança inversamente proporcional à expectativa).

Essa correspondência tem aspectos, é claro: a garota que eu gosto já gostou de mim, e se ela não me ama foi porque eu pude viver o ciclo completo do amor fracassado, que consiste em se apaixonar, depois ser correspondido, e depois agir de tal forma a perder a chance. Outro aspecto são as duas crianças, um amor independente, porém intrinsecamente relacionado ao primeiro amor. E há ainda o aspecto do respeito que ela tem. O respeito é uma coisa que pode ser conquistada, mas que no caso dela, da garota que eu amo, vem dela, que me respeita menos por méritos meus e sim mais por ela adotar o respeito como uma prática habitual em todos os casos em que ele seja aplicável.

Eu poderia arranjar outra garota ("poderia" num sentido hipotético e fantástico, já que nas poucas vezes em que "arranjei" uma garota, isto aconteceu em circunstâncias bem peculiares; a maior parte da vida amorosa eu fui o personagem da poesia Timidez, de Cecília Meireles); então, corrigindo, eu poderia encontrar outro amor não correspondido, e roer as unhas à espera do efeito deus ex machina das tais circunstâncias peculiares, mais raras do que diamantes.
Não seria um caminho fácil, porém seria o caminho já conhecido, alargado, aplainado e asfaltado da minha vida amorosa, de cuja estrada eu já conheço os passos que não vão dar em nada, pois seus segredos (e as músicas do Secos e Molhados) sei de cor.
Seria, também, um caminho melhor, muito melhor, do que o descaminho das soluções machistas (pois não é por não praticá-lo que sou isento de machismo), que na melhor das hipóteses resultaria em um rancor eterno e (das duas uma) divã ou mesinha de bar. E eu sei que eu escolheria o bar, porque se eu fosse do tipo que escolheria o divã talvez nem tivesse chegado neste ponto, prá começar.

Melhor sofrer por amor do que lutar contra ele (se não aparecer nada melhor até o fim, este vai ser o título deste texto).

O que restou para ser decidido foi se eu continuaria a amar a garota que eu amo para além do sublime "amai-vos uns aos outros". A minha decisão foi o resultado de uma adaptação particular do conceito católico de matrimônio (não que o matrimônio se reduza ao seu conceito, mas ao mesmo.tempo ele é, sim, conceituável), que resultou no seguinte:

Primeiro, um casamento sem contrapartidas (uma característica que, na inimaginável - porém desejada - e remota hipótese de ela um dia quem sabe querer casar comigo, seria mantida - não por bondade, mas por estratégia porque até certo ponto eu sei com quem eu estou lidando). Isto consiste em não exigir nada dela que seja, a princípio, irrecusável, ou seja, não considerar nada que eu queira dela como algo irrecusável. Ou, dito de outro modo, ela não é, da minha parte, obrigada a nada, e nem eu me dou o direito de obrigá-la em nome de terceiros (as crianças, Deus ou a Igreja, por exemplo - porque, do contrário, isto daria margem a coisas como "não estou exigindo isto por mim, mas sim por/pela [insira aqui as crianças, Deus ou a Igreja]").

Depois, um casamento unilateral. Para todos os efeitos, eu sou casado com ela, mas esses efeitos só se aplicam a mim: não ficar com outras pessoas, buscar o bem do outro cônjuge, até gerar filhos é um item que já foi cumprido, atender as demandas dela (as que eu posso, porque eu não cumpro 90% das expectativas dela, eu sei). É claro que eu não saio dizendo por aí que eu sou casado (o que soaria até meio doentio), geralmente a minha resposta à pergunta "mas vocês estão juntos?" é "eu não poderia dizer nem que sim, nem que não", mas considero ofensivo o status de "enrolados" para este caso. "Nem que sim, nem que não" é uma definição bastante objetiva, apesar de ser complexa, e talvez por isto as pessoas associem com "enrolados", mas são duas coisas completamente diferentes.

A Igreja não determina o que é um matrimônio (põe limites e encontra nele um sacramento, mas não o determina) e eu me aproveito muito desta indeterminação. "Matrimônio", aliás, é como "vida", "homem", "mulher", palavras que poderiam substituir "liberdade" no verso "... é uma palavra que não há quem a explique nem ninguém que não entenda".

Talvez eu possa chamar a minha decisão de "compromisso irrevogável unilateral por motivos religiosos, dado em resposta a uma paixão, sem ser abençoado nem proibido pela Igreja". Mas pode ser que, pelo contrário, haja uma CID para decisões como esta.


23 de dezembro de 2019

 

Os limites da arte

A arte certamente tem limites. Como exemplo, pode-se usar uma hipotética obra, digamos uma pintura, que represente um ato sexual pedófilo, que o autor entitule de "O Abuso da Inocência" e explique que serve para alertar contra o mal da pedofilia. O título e a intenção demonstrariam claramente o rechaço do autor e da sua obra ao mal da pedofilia, mas mesmo assim seria uma obra digna de censura, porque nem a liberdade da arte e nem o combate à pedofilia justificariam a exibição do ato, mesmo que apenas representado em um quadro (não que uma eventual releitura do quadro "Saturno devorando um filho", rebatizado com o mesmo "O Abuso da Inocência" e com as mesmas nobres intenções do exemplo fora dos parêntesis, pudesse ser censurado - o exemplo.fora dos parêntesis era o de uma obra de arte digna de censura, o exemplo dentro destes parêntesis, o de uma obra idêntica àquela, sem no entanto um elemento censurável).

Um exemplo.assim tão extremo serve apenas para demonstrar, ao mesmo tempo, tanto a imensa extensão da liberdade da arte quanto a existência de limites a ela: por mais longínquos que sejam os seus limites, eles existem.

O especial de natal do Porta dos Fundos, que eu não assisti, mereceria censura há, talvez, cinco ou dez anos atrás, pelos mesmos motivos que justificam-na hoje. Mas hoje, em 2019, não cabe esta censura.

O cristianismo já foi um projeto político concretizado no tempo em que a cristandade era, para todos os efeitos, idêntica à sociedade. Depois que a sociedade abandonou o cristianismo como projeto político, a religião passou a ser um aspecto entre outros da sociedade e, embora o cristianismo realmente seja verdade e deva ser ouvido ("convertei-vos e crede no evangelho"), ainda assim a verdade não deve ser imposta - embora Deus imponha a sua vontade na sua atuação discreta e misteriosa, se ele quisesse impor a verdade proclamada pelo cristianismo, não teria instiuído o livre-arbítrio.

Apesar disto, há cinco ou dez anos atrás seria muito justo considerar a censura ao especial de natal do Porta. Porém hoje o cristianismo está sendo usado desfiguradamente por uma porção da sociedade para a promoção de candidatos.

Há uma diferença muito grande entre um candidato identificar-se com o cristianismo e um candidato identificar o cristianismo consigo mesmo. Nem o Papa identifica o cristianismo consigo mesmo, já que ele é o legítimo sucessor de Pedro, e não a Igreja em si.

Candidatos cristãos são falácias, o máximo que pode haver são cristãos candidatos. Até mesmo Judas, mais cristão do que todos nós, porque era um dos Doze Apóstolos, tomou decisões erradas - e as consequências das suas decisões provam que quanto mais alto é o cargo do cristão (pois além de Apóstolo era quem cuidava do das finanças do grupo), piores serão os seus menores erros.

Quando a política "se torna" cristã, ela expõe o cristianismo ao jogo político com todas as características do jogo político, e faz parte deste jogo político a crítica oposicionista, que pode muito bem ser feita em uma obra artística - como um filme do Porta dos Fundos.

O cristianismo tem sua própria política (basta ler a Doutrina Social da Igreja); porém quando "o cristianismo" governa um país, ele é o poder vigente, e o poder vigente é, entre outras coisas, o alvo dos humoristas.

As propostas políticas cristãs podem e devem ser implantadas na sociedade, mas devem ser implantadas de modo a contemplarem toda a sociedade, que não é toda ela cristã, infelizmente.

E este não é o caso deste governo, que evoca o cristianismo e esquece-o conforme lhe convenha, não para trabalhar em prol da implantação de valores cristãos na sociedade, mas sim para satisfazer uma base de apoio - que insiste em adaptar o cristianismo às suas próprias convicções pessoais, ao invés de adaptar as próprias convicções ao cristianismo. Se a maioria da população fosse politeísta, Bolsonaro iria se declarar enviado por Baal com a mesma convicção.

Uma vez que o cristianismo foi reduzido (e desfigurado) a um projeto político, ele se torna alvo dos ataques a que todo e qualquer projeto político está sujeito.

Isto não torna louvável nem menos ofensivo o vídeo do Porta dos Fundos, mas dá a eles o direito de desfigurar as imagens cristãs exatamente do mesmo modo que os políticos cristãos estão fazendo.

Nem todo o direito é santo (como não o é o direito que alguns países tem de executar prisioneiros, por exemplo) e este direito que o Porta dos Fundos possui também não o é - e portanto eu não defendo o direito deles de fazerem o que fizeram. Mas eles - e, diga-se de passagem, qualquer artista - adquirem automaticamente este direito quando os governantes arrogam-se o direito, que também não é santo, de fazerem política com o cristianismo.

Do mesmo modo que um comerciante cristão não comercializa o próprio cristianismo - e se o fizer reduz o cristianismo aos seus negócios, igualmente um político cristão não politiza o próprio cristianismo, pois quando o faz, reduz o cristianismo à sua própria política. Cristianizar a política é necessário, mas politizar o cristianismo é uma blasfêmia maior - e anterior - às obras de arte que usam as imagens cristãs para darem o seu recado.

22 de dezembro de 2019

 

Questionáveis sugestões

Li - de relance, nem lembro onde, talvez na semana passada - que a Igreja precisa abolir algumas das suas doutrinas para avançar.

Eu, por outro lado, acho o contrário: o que a Igreja precisa é de radicalizar-se nas suas doutrinas para avançar.

Se a Igreja só ordena homens, resolve-se facilmente o problema ordenando mulheres. Mas isto não vai resolver o problema do machismo que corre solto pelos corredores da Igreja, e ainda por cima (na minha chutologia) vai liberar os homens de uma das poucas funções no mundo em que eles tem que se doar (quase) tanto quanto as mães se doam.

Ordenar as mulheres me parece uma demanda que atende mais aos interesses de padres relapsos (não que seus defensores sejam necessariamente relapsos) do que os interesses pastorais da Igreja. E não é muito diferente de abandono parental: num mundo em que a grande maioria dos homens abandona os filhos deixando-os sob os encargos exclusivos das mães, é coerente que eles deixem também o peso da batina sobre os ombros das mulheres; mas não é por ser coerente que deixa de ser igualmente errado.

Acho que seria mais justo (porque eu também tenho direito de sugerir minhas teorias malucas) criar uma Ordem das Mães ou ressuscitar (não era para ser um trocadilho sacro) a Ordem das Virgens, que existe mas ninguém fala dela, já que no mundo em que vivemos hoje, a virgindade é como um saldo negativo no banco (o que pouca gente sabe é que o saldo negativo do correntista é um saldo positivo pro banco, porque para ele significa um direito à espera de ser recebido - e no caso do sexo, o indivíduo é o banco; embora esta analogia seja um pouco confusa e muito incerta, já que eu nunca entendi direito isto, seja o sexo ou a contabilidade).

Muito parecido com isto é a questão do aborto. Já li (o que tem cara de fake news, mas eu já li mesmo, só não lembro onde nem quando; e preciso considerar a possibilidade de que eu tenha dado importância a alguma leitura irrelevante, mas) já li que seria melhor para a Igreja retirar o aborto do rol de pecados graves; mas o certo ("certo" segundo a minha opinião) seria mesmo reforçar doutrinas favoráveis às mães, como, por exemplo, dar indulgência plenária pra toda mulher grávida, e depois outra quando parisse, e mais outras periódicas, sei lá, a cada aniversário de um filho, ou quando ele casasse, se tornasse padre, religiosa ou religioso. E poderiam, também, dar uma indulgência plenária no fim da vida para os pais que realmente tenham participado ativa e positivamente tanto da criação dos filhos quanto do bem-estar das mães (porque se é verdade que uma mulher casada e com filhos tenha uma dupla responsabilidade para com os filhos e para com o marido, sendo que os filhos são prioridade em relação a ele, também pode ser muito bem verdade que na igualmente dupla responsabilidade do marido para com os filhos e a esposa a prioridade dele seja ela - uma mulher não vale pelos filhos que tem, mas ter filhos multiplica o valor que, sem eles, já era incomensurável). Valorizar a maternidade e a paternidade dá no mesmo que combater o aborto, mas é muito mais benéfico do que montar acampamento na frente do Pérola Byngton - e dá menos ranço, pelo menos em mim.

Acho que há casos em que a boa disposição de alguém se revela em fatos concretos, e é isso que as pessoas cobram da Igreja quando exigem coisas como ordenação feminina, afrouxamento da doutrina em relação ao aborto e outras coisas do tipo (como vender todos os bens do Vaticano ou acabar com a obrigatoriedade do celibato para os padres).
Mas nem sempre acabar com as regras elimina o problema: talvez, aprofundar ainda mais elas seja mais eficiente.
É mais ou menos isto que acontece quando, por exemplo, o Papa resolve incluir mais uma ocasião em que matar é proibido (retirando a licença para a pena de morte do catecismo), ou quando Cristo diz "Não julgueis que eu vim abolir a Lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição" (Mt 5, 17).

Não que as minhas questionáveis sugestões equivalham a "levá-los [a Lei e os profetas] à perfeição". Embora eu ache-as válidas (senão não teria sugerido), todas elas foram só para não ficar apenas nos dois primeiros parágrafos.

20 de dezembro de 2019

 

opinião disfarçada de teoria

Acho que homossexualidade e heterossexualidade são as duas manifestações empíricas da relação sexual, que, por sua vez, é uma das maneiras de vivenciar a sexualidade.

Se o que eu acho estiver correto, então as relações sexuais (heterossexuais e homossexuais) são, em princípio, pecados.

O pecado da manifestação empírica da sexualidade consiste em reduzir a vivência da sexualidade às suas manifestações empíricas, porque uma vivência é muito mais ampla do que suas manifestações empíricas. Seria mais ou menos como reduzir a caridade a dar esmolas (que, segundo a Didaquê, devem suar nas mãos antes de serem dadas).

Não que a relação sexual seja uma esmola, mas ela está para a sexualidade como a esmola está para a caridade (razão e proporção entre conceitos).

Dar esmolas é uma prática frequentemente acusada se ser um desencargo de consciência: quase sempre significa não se importar habitualmente com os outros mas dar umas esmolas para se sentir bom mesmo assim. É possível dar esmola para manifestar a caridade - para manifestar, de forma empírica e tangível - a misericórdia de Deus; e é possível fazer da esmola um modo de reprimir esta misericórdia, ou pelo menos de tentar reprimí-la.

A complexa rede multidimensional de sentimentos, desejos, ideias, conceitos e necessidades que compõe a sexualidade pode ser facilmente ignorada transando, como um analgésico que neutraliza dores, mas neutraliza necessariamente também a sensibilidade.

O Analista de Bagé, um personagem do Luiz Fernando Veríssimo, inventou a Terapia do Joelhaço, que consiste em provocar dores físicas (o joelhaço) até que elas doam mais do que as existenciais. A relação sexual segue a mesma lógica, mas troca a dor pelo pelo gozo físico e tem o mesmo resultado: suspende temporariamente alguma coisa (a complexidade da rede multidimensional da sexualidade, no caso da relação sexual) que volta renovada, a ponto de parecer que é uma (dolorida) novidade.

Segundo a minha opinião disfarçada de teoria profunda, portanto, defender a heterossexualidade ou a homossexualidade é, além de pecado, uma insensatez.

Por mais que eu acredite na doutrina católica de que a relação homossexual é um pecado, eu vejo mais pecados (e na minha opinião mais graves) sendo cometidos em relações heterossexuais. E por mais que eu defenda a mesma liberdade sobre o uso do corpo que os advogados da promiscuidade defendem, eu vejo esta liberdade sendo usada do mesmo jeito por todo mundo a ponto de se assemelhar a uma imposição.

Por isto que defender a homossexualidade ou a heterossexualidade é insensato: enquanto tudo gira em torno de transar, a sexualidade vai se apagando aos poucos, endurecendo cada vez mais as relações - inclusive as sexuais - entre as pessoas.


13 de dezembro de 2019

 

Mais um Especial de Natal do Porta

Há anos eu leio teorias que aventam a homossexualidade de Cristo, sejam supondo um caso com S. João Evangelista, sejam ponderando que treze homens vivendo juntos só poderiam ser gays. Eu não acredito nestas teorias e acho-as parecidas com as que julgam que o homem nunca foi à Lua ou que a Terra é plana. Dá pra incluir aí a Teoria da Evolução de Darwin, que provavelmente é verdade, mas que compete com os que a negam, e com os que, aceitando-a, extrapolam afirmando que o ser humano veio do macaco - duas posturas opostas mas cujos efeitos práticos e demonstrações de desinformação são as mesmas.

Uma vez eu li que de qualquer texto é possível fundamentar praticamente qualquer interpretação, portanto é até possível inventar uma revelação divina escondida neste texto mesmo - afinal eu também tenho direitos.
Mas se de qualquer texto é possível tirar qualquer interpretação, quanto mais a Bíblia, que, sem deixar de ser Palavra de Deus, é em muitos casos a tradução de uma tradução cheia de imagens e significados de culturas distantes.

Eu compraria todo este celeuma com o especial de fim de ano do Porta dos Fundos se já existisse algum debate generalizado sobre, sei lá, a interpretação da Bíblia, antes de eles lançarem mais um vídeo que, desde o primeiro, tem a intenção mesmo de ser ofensivo. Eles tem outros vídeos, cotidianos, alguns bons, outros ruins, alguns até mais ofensivos que o que dizem deste de final de ano, e outros que, por outro lado, poderiam até ilustrar temas de catequese, por exemplo.

Mas este celeuma todo não é pela ofensividade do vídeo - se fosse, todo mês haveria todo este barulho. E também não é porque retrata Jesus como gay, pois, como eu disse no primeiro parágrafo, esta ideia não é novidade. Este celeuma todo é porque eles tem publicitários competentes que sabem como fazer para chamar a atenção.

A manifestação mais sensata me pareceu a da nota da CNBB, que afirmou ter se sentido - com justiça - agredida, porque os relatos sobre o vídeo sugerem que ele seja mesmo agressivo, sem se limitar a dizer que Jesus era gay; mas, além de afirmar ter se sentido agredida, a CNBB clamou "a todos os cidadãos brasileiros a se unirem por um país com mais justiça, paz, respeito e fraternidade", depois de reconhecer a autonomia de cada pessoa a reagir conforme a sua consciência.

12 de dezembro de 2019

 

sexta-feira da segunda semana do Advento

Quando as bruxas eram queimadas em nome de um cristianismo desvirtuado, os dirigentes da Igreja deixaram um flanco aberto por causa de sua omissão, e foi por este flanco que seus sucessores apanharam alguns séculos depois - acusados não mais de omissos, e sim de homicidas. A acusação foi injusta, mas mas a censura ao comportamento dos seus predecessores foi correta. Mesmo que a Igreja alegue, com muita razão, que dentro do contexto da época os dirigentes puseram freios nas Inquisições, a resposta foi tímida, e isso não apaga que posteriormente tenha sido tão difícil um reconhecimento formal de que pelo menos hoje os métodos empregados naquela época eram errados.

As críticas ao comportamento da Igreja no período da Inquisição quase sempre são pelos motivos errados, mas são - igualmente - quase sempre justas. A Igreja não matava, e se é verdade que, pelo contrário, se esforçava para não deixar matar, fazia muitas vistas grossas.

Então veio o pedido de desculpa pela condenação a Galileu, alguns outros pedidos de desculpas por algumas outras coisas e, por fim, chegamos ao ponto em que o Papa mandou retirar do catecismo qualquer hipótese em que o assassinato não seja um pecado.

E aí isto foi um absurdo para alguns, mais apegados às próprias tradições assassinas do que à Tradição da Igreja; também foi muito pouco para outros, que esperam do Papa um pop como o Engenheiros tenta pintá-lo desde os anos 80 (ou O Papa é Pop é dos anos 90? Mas não deve ser nem de antes dos 80 nem de depois dos 90, pelo menos).

Assim a Igreja segue sendo como os meninos do evangelho de hoje, que reclamam por ninguém ter dançado quando tocaram flauta, nem ter chorado quando tocaram canções de luto.

Quando a Igreja parece ser sanguinária, mesmo sem o ser, o problema é a "malvadeza" da Igreja; quando a Igreja parece ser populista (como toda catedral, segundo O Papa é Pop), mesmo sem o ser, o problema é a "liberalidade" da Igreja.

A Igreja, santa pela ação de Deus e pecadora porque são pecadores que a constituem - pois se fossem entrar nela só os santos, seria apenas a Santíssima Trindade dentro dela; esta Igreja santa e pecadora segue Cristo, acerta aqui, erra ali, se deixa corrigir por Deus e segue em frente, indo atrás de Cristo.

Mas as críticas, que devem ser feitas quando forem justas - e estão aí os casos de encobertamento de padres abusadores para lembrar que há, sim, ocasiões para críticas muito justas - às vezes parecem ser motivadas não por erros cometidos pela Igreja e sim por... bem, seria ir pelo mesmo caminho destas críticas tentar adivinhar o que pode estar por trás delas.

 

quinta-feira da segunda semana do Advento (festa de Nossa Senhora de Guadalupe)

"Dogma" deriva do grego ["dogma" em caracteres gregos que não tem no meu celular] e significa "aquilo que aparenta; opinião ou crença", e essa palavra em caracteres gregos deriva de outra, também em caracteres gregos ("dokeo" em letras normais) que significa "pensar, supor, imaginar" (cf. o verbete "dogma" da Wikipédia em português).

Antes de revoltar-se contra os dogmas católicos, convém pensar nas guerras dogmáticas contemporâneas: o preconceito, por exemplo, é uma heresia (segundo a Wikipédia, "heresia" significa "escolha ou opção", cf. o respectivo verbete). A negação do preconceito é um dogma.
Ambos, heresia e dogma, são muito parecidos: ambos têm a ver com um dogma, mas somente a heresia é opcional, enquanto que o dogma é inevitável como uma verdade. Afinal o que pode ser verdade, o preconceito ou a sua negação? Escolher a sua negação é como convencer-se de que um mais um é igual a dois, mas não por uma imposição lógica, e sim pelo triunfo do bom senso. Mas a escolha pela verdade não é como a escolha entre alternativas igualmente válidas entre si, e sim a escolha correta (pois existem na vida, como nas provas, respostas corretas), porque o possível não adquire validade e nem valor apenas por ser possível.

O dogma é a escolha pela verdade, pura e simplesmente. É um dogma apenas porque não pode ser demonstrada enquanto verdade, como pode ser demonstrada a verdade de que um mais um é dois. E também é, o dogma, a expressão da verdade - a negação do preconceito, no caso deste exemplo.

Obviamente as questões sociais não são um embate entre dogmas e heresias, era só uma analogia do que significam os dogmas católicos enquanto verdades que, indemonstráveis, ainda assim são verdadeiras e, além disto, implicam em negar a alternativa falsa.

Há dois dogmas católicos muito importantes (entre outros igualmente importantes): a encarnação de Cristo e a sua natureza tanto humana quanto divina.
O primeiro dogma diz que "o Verbo se fez carne e habitou entre nós", e o segundo, que não deixou de ser o Verbo por isto, e nem deixou de ser plenamente humano por ser o Verbo encarnado.
A Igreja sempre acrescenta "igual a nós em tudo, menos no pecado", o que é verdade, mas omite (pela praticidade) toda a reflexão sobre o pecado ser desumano apesar de ser parte da condição humana, pelo menos entre este período de tempo entre a queda de Adão e Eva e o juízo final - depois do qual seremos, então, plenamente humanos.

Estes dois dogmas, a Encarnação e a Dupla Natureza (de Cristo), são importantes por causa do fundamento da esperança cristã: a ressurreição de Cristo.
Um Cristo Ressuscitado exclusivamente divino que fundamente a esperança cristã é como dizer que o trabalho enriquece exemplificando isto com os ricos herdeiros que trabalharam verdadeiramente para justificar a posse do que seria deles mesmo se não tivessem tido todo este trabalho. Ou seja, Cristo abriu mão de seus recursos divinos para ser santo, sendo-o, portanto, em igualdade de condições conosco (exceto a condição do pecado), pois do contrário seria simples dizer "mas eu não posso fazer isto porque não sou Deus como é Cristo". Trabalhar para ficar rico é uma furada como seria uma furada correr atrás de uma santidade acessível apenas a Deus. A ressurreição é uma obra exclusivamente divina, mas a santidade, condição para a Ressurreição, é humanamente possível, e o dogma que atribui a Encarnação a Cristo conta exatamente isto: era um ser humano, gente como a gente.

Só que este dogma não pode ser reduzido ao absurdo, o que consiste em negar a divindade de Cristo. Se Cristo não era Deus, então a humanidade que se salve. Se Cristo era só humano, Deus o recompensou por seu gigantesco esforço como quem paga uma dívida (e aí a santidade vira uma moeda, cujos proprietários poderão usar para exigir de Deus o que lhes cabe de direito), fazendo de Deus não mais Aquele que vem até nós, proativo em nosso favor, mas sim um Carimbador Divino menor do que a regra que lhe obriga a carimbar a ressurreição dos nobre e abnegados esforçados credores de Deus. Fazer do banco um deus é idolatria, mas fazer de Deus um banco é heresia.
Deus não deve nada a ninguém, mas em compensação é mais generoso do que qualquer ricaço consciente que possa existir.

Então Deus se fez carne, a santidade é acessível ao simples ser humano e a salvação é uma dádiva divina. É o que dizem os dois dogmas e deles podemos concluir muitas coisas, inclusive a interação entre Deus e o homem, tão desnecessária para Deus quanto necessária para o homem. Cristo, Deus e homem sob todos os aspectos, atua em colaboração conosco para o nosso benefício - colaborar com Deus é uma necessidade da gente e não de Deus. E qual representante do Homem pode se apresentar como modelo e exemplo de colaboração com Deus? Cristo? Mas Cristo se fez homem para que ninguém diga que Deus não sofreu na carne o que sofremos. João Batista? Mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele - ou seja, é um grande modelo mas não é o modelo maior. Os Apóstolos? Mas os apóstolos passaram o evangelho todo vacilando, e só o Espírito Santo pôde dar um jeito nisso quando veio em Pentecostes.
Nós precisamos colaborar com Deus sem vacilar, dizendo sim a Ele e, ainda por cima, ser sermos espectadores passivos do espetáculo da salvação. João Batista veio preparar o caminho de Cristo, e não percorrer o caminho. Os apóstolos só por milagre entenderam as palavras de Cristo (literalmente, pois foi necessária a intervenção direta do Espírito Santo e de Cristo, no caso de Paulo, para entenderem e agirem segundo a vontade de Deus.
Então quem já dizia "fazei o que ele vos disser" (certamente sob a inspiração do Espírito Santo mas) antes de Pentecostes? João Batista foi o precursor de Cristo, e não da nossa santidade. Fomos salvos pela morte e ressurreição de Cristo, então podemos esperar sentados que ele venha nos salvar?

Quando os apóstolos estavam indo com a farinha, Maria já estava voltando com o bolo. Ainda que todos - Maria, os apóstolos e nós - dependamos da graça imerecida de Deus, somente um de nós todos fez isto - ajudar Deus - primeiro, e de um jeito que ninguém mais poderia ajudar.

Portanto, enquanto os dois dogmas apresentam Deus entre nós e compartilhando dos mesmos problemas (até boletos Cristo tinha que pagar, basta ver o episódio da moeda dentro da boca do peixe).

Maria, pelo contrário, somos nós colaborando com Deus. É muito fácil identificar-se com Cristo e se agarrar na parte divina da identificação (quantos cristãos não preferem, por exemplo, imitar Cristo dizendo "não me toqueis porque ainda não subi ao Pai" do que imitar Cristo defendendo uma prostituta do linchamento?). Imitar Cristo é imprescindível, porém apenas imitar não basta, senão os dois ladrões crucificados com ele teriam sido expressamente admitidos no Reino. É necessário deixar-se redimir ao mesmo tempo em que se trabalha por esta redenção.

E é isto, ser redimido, que se comemora nestas comemorações marianas: não uma redentora, pois foi Cristo quem nós salvou, mas a redimida-mor, a redimida das redimidas. Se as ações dos Apóstolos, do Batista e de tantos outros personagens evangélicos podem nos servir de inspiração, quanto mais poderemos da primeiríssima colaboradora de Cristo. 

11 de dezembro de 2019

 

Quarta-feira da segunda semana do Advento

Quando HAL 9000 tentou matar toda a tripulação do Discovery, depois de ter inventado um problema na antena que fazia a comunicação com a Terra, ele procurava resolver da forma mais lógica possível um conflito dentro da sua programação: por um lado ele fora originalmente programado para dar informações e respostas completas e verdadeiras sobre tudo o que lhe fosse perguntado; por outro lado, o governo dos EUA não queria que os objetivos reais da missão fossem revelados até que a nave chegasse a Júpiter, e para isto deu a informação a HAL, mas programou-o para que não revelasse isto aos astronautas durante a viagem.
HAL fez o que lhe pareceu mais óbvio: tentou cortar a comunicação com a Terra, que era quem lhe forçava a mentir contra a sua programação, e tentou matar a tripulação da Discovery, para não ter para quem mentir contra a sua programação.
Por sorte HAL é uma personagem de ficção, mas este fardo, a mentira, é um fardo que nós, pessoas reais, muitas vezes carregamos: seja por uma orientação de instâncias hierárquicas superiores, como chefes que proíbem divulgar segredos empresariais, seja por estratégia, como um criminoso que nega o crime que cometeu enquanto não encontram provas contra ele, por exemplo; a mentira, que é um fardo, às vezes parece até uma vantagem, como a pessoa que trai o cônjuge e se deleita em não precisar se abster de seus desejos nem de precisar se desgastar com a revelação da traição, ou o clássico político que descobre uma forma de ganhar dinheiro indevido graças a sua posição... aliás, são inúmeros os exemplos.

A questão é que a mentira é um fardo, mesmo quando parece uma vantagem. Sua falsa leveza nós verga sem percebermos, e às vezes demora tanto que temos a oportunidade de botar a culpa desta prostração em outras coisas, enquanto o peso das mentiras nos oprime.
E a mentira é só um destes pecados que, em doses pequenas e em contextos inofensivos, é socialmente aceito por ser leve, tão leve quanto a pluma que pousa na simples e suave coisa, como na música dos Secos e Molhados (embora o amor, que é título da música e também o objeto, não mencionado, que é leve como uma pluma na letra da música, não se identifique como pecado, é óbvio).
Há tantos pecados levíssimos, irreconhecíveis quando pesados pois só os reconhecemos camuflados pela leveza, que nos levam a atribuir o peso a outras coisas...

Cristo certamente alivia o fardo de pesos que não envolvem diretamente pecados: a miséria e a fome (que não são culpa dos miseráveis e esfomeados, e sim um pecado coletivo da humanidade), a doença e o sofrimento, a solidão e o desespero, as guerras e seus horrores (tudo isto também é fruto de um pecado coletivo, e Cristo alivia os fardos das consequências deles, bem como os fardos dos que procuram cuidar das vítimas destas violências).
Mas isto é ao mesmo tempo óbvio e complexo: pecados sociais, pecados coletivos e estruturais, pecados do sistema nos pesam mesmo que não sejamos as vítimas diretas, e há os que carregam outro fardo, os que zelam pelo cuidado das vítimas imediatas - pesos que Cristo alivia também, e que certamente são os destinatários imediatos e preferenciais do texto do evangelho de hoje. Um assunto tão importante que é melhor deixar para os padres nas suas homilias e teólogos nos seus estudos.

Eu queria me referir apenas a estes fardos enganosos - um deles é a mentira e serviu como exemplo - que enganam por não parecerem fardos e se apresentarem com uma leveza às vezes até libertadora. Tão leves na aparência que, quando pesam, parece impossível que sejam a causa de andarmos curvados pela vida afora.
E são estes fardos, creio eu, que Cristo alivia quando "tomamos sobre nós o jugo Dele" (cf. Mt 11,29).

Mas qual será o "jugo suave" e o "fardo leve" de Cristo? Não deve ser a Cruz, pesada em todos os sentidos.

Deve ser a vontade de Deus - esta sim, levíssima a ponto de ser quase imperceptível, como a doçura de uma cenoura que as doçuras artificiais impedem nosso paladar de perceber.
A verdade, que é uma vontade de Deus e o complemento do exemplo neste texto, pode parecer de um peso arroz. Há anos Álvaro de Campos aguarda "ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia" (Poema em Linha Reta), e é esta a maneira como, ainda dentro deste exemplo, o jugo é suavizado: falando a verdade (seja sobre pecados, seja sobre infâmias) sobre as coisas.
E falar a verdade é difícil, é inconveniente; às vezes a verdade pode até ser usada tão malevolamente quanto um pecado (como denunciar as mentiras alheias para desviar a atenção das mentiras do próprio denunciante). Mas por mais que possa trazer muitos problemas, a verdade está alinhada com Cristo (que é caminho, verdade e vida), cujo jugo é suave e o fardo é leve.

Se é possível delinear assim assim tão claramente (embora este texto seja confuso) a leveza do jugo de Cristo (a verdade) contraposta à falsa leveza da mentira, quanto mais haverá descanso em carregar o fardo de Cristo em outras situações que não aparecem tão claras assim.

10 de dezembro de 2019

 

terça-feira da segunda semana do Advento

Um padre em uma missa mencionou, um dia desses, um santo afirmando que o pecado era uma coisa ótima, porque quando pecamos temos necessidade de sermos resgatados por Deus.
Eu não lembro o nome do santo, e embora eu tenha entendido o sentido da afirmação, achei um tanto ousado, tanto o santo quanto o padre, em fazerem esta afirmação. Agora, ousadia das ousadias, o evangelho de hoje diz, por uma analogia, a mesma coisa: "Em verdade vos digo, se ele a encontrar [a ovelha que se perdeu], ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam." (Mt 8, 13)

Este elogio ao pecado pode dar margem a concluir alguma coisa do tipo "eba, então vamos pecar!!!", o que seria uma conclusão racional, mas só assim, fora de contexto.
Muito mais do que elogiar o pecado, esta passagem (e também a afirmação do santo) demonstram a confiança em Deus que muitos cristãos hoje em dia não tem: ao constatarem pecados (num recorte que exclui a maioria destes e inclui outros minuciosamente selecionados, como a homossexualidade e o aborto - uma seleção que me parece não se fundamentar em um zelo por Deus, mas em alguma outra coisa); enfim, ao constatarem pecados sendo cometidos em escala industrial, se desesperam com a depravação, com o assassinato dos inocentes, com o quão afastadas as pessoas estão de Deus, e então promovem uma cruzada verbal contra os pecadores que, se parassem para pensar direito, veriam que não serve para nada (olha aí os muçulmanos muito bem instalados nas suas terras, instalados inclusive em Jerusalém, depois de matarem e morrerem para expulsá-los séculos atrás - e, diga-se de passagem, num comportamento animalesco coerente com o pensamento de séculos atrás, mas não com o atual).
Imagine você xingar de coisas horríveis um pecador, ofender ele até não poder mais, e no fim ele dizer "nossa, eu sou mesmo um pecador e você me xingou tanto que eu me converti". Se fosse o ódio que salvasse as pessoas, Cristo não teria morrido na Cruz, mas destilado ódio santo em textões no Facebook. Seria também parecido com Cristo pedir às noventa e nove ovelhas restantes que berrassem "mééééé!!!" bem alto até a ovelha perdida voltar, ao invés de ter feito como fez o dono das cem ovelhas: ido pessoalmente procurar a perdida.
Mas muitos cristãos fazem isto, cruzadas de xingamentos e mééééé's chiliquentos, por falta de fé, ou melhor, pelo desespero causado pela falta de fé no Deus em nome do qual estão xingando e chilicando.

A ovelha perdida poderia ser muito bem retratada com um olhar malvado, um cigarro na boca, uma faca sangrenta numa das mãos, alguma depravação moral na outra e uma camiseta escrita "a ovelha perdida".
Neste quadro hipotético (ah, se eu fosse um artista) haveria uma outra ovelha de gravata, bem arrumada, talvez até com uma Bíblia Sagrada numa das mãos e a outra aberta em um gesto de interromper Cristo que fala com ela, que também usaria uma camiseta escrita "uma das noventa e nove que não se perderam". Por uma janela em um dos cantos do quadro (ambientado em um bar, porque eu não preciso ser um artista para ser um clichê sem talentos) daria para ver as outras noventa e oito pastando tranquilas, nem perdidas nem desnecessitadas de salvação.

O grande perigo das ovelhas perdidas é estarem perdidas, o que é óbvio, mas demonstra que com as ovelhas perdidas tudo está muito claro: elas estão perdidas, e Cristo vai atrás delas.
Mas o perigo das noventa e nove que não se perderam é julgar que também não precisam ser encontradas. São cidadãs de bem, trabalham, não roubam e nem matam (embora talvez gostassem de andar armadas para se proteger das outras, perdidas), vão a igreja todo domingo e talvez só lhes falte "ganhar um fuscão no juízo final e diploma de bem comportado" (Gonzaguinha) para completarem o seu checklist.
Qualquer semelhança do cidadão de bem com o fariseu que dava graças a Deus por não ser ladrão, corrupto, adúltero, nem ser como o publicano que dividia o espaço com ele que jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de tudo o que ganhava ... (cf. 18, 11-12); enfim, qualquer semelhança entre o cidadão de bem e o fariseu não é mera coincidência.

Cristo não quer que pequemos (assim como não o querem o padre e o santo mencionados no primeiro parágrafo), e por isto vai atrás dos pecadores - não como um cruzado disposto a eliminar o pecado junto com o pecador, mas apenas para oferecer o seu amor.
Mas o que um Cristo manso e humilde de coração poderá fazer por um pecador que não precisa de salvação porque já se julga um santo?, um santo que se atribui uma licença 007, porque quem odeia o outro é um homicida (cf. 1Jo 3,15), mesmo que o deixe vivo, e quem chama o outro de louco - ou de idiota, em algumas traduções da Bíblia - vai pro inferno (cf. Mt 5,22).

Cristo vem oferecer a salvação ao cidadão de bem e à ovelha perdida, mas acho que deve ser mais fácil de lidar com o "não quero" da ovelha perdida do que com o "não preciso" daquela que não se perdeu.

9 de dezembro de 2019

 

segunda-feira da segunda semana do Advento

Primeiro alguém lhe ofende. Ainda não importa se era uma ofensa ou seu capricho, mas sim ter sentido a ofensa. Então você odeia, o que é muito natural. Aí você pode perdoar ou condenar quem lhe ofendeu.

Mesmo que ninguém execute a sua condenação, ela lhe dá uma sensação de justificação - e então você é, pelo que lhe diz seu coração, uma pessoa justa. E assim o dia foi salvo pelo ódio, porque a condenação é a salvação do ódio.

Os fariseus e escribas que se ofenderam com o perdão concedido por Jesus seguiram por outro caminho: eles se sentiam justos por cumprir a Lei, e faziam isto às custas de muito sofrimento. Então vem Cristo e perdoa fácil fácil um zé-ninguém paralítico içado numa maca telhado abaixo. Ele nem teve que se esforçar, foram seus amigos que o trouxeram, carregaram-no telhado acima e o baixaram até onde Cristo estava. O zelo deles não era pela usurpação das prerrogativas de Deus (pois julgavam que Cristo não era Deus), mas sim pela facilidade com que o paralítico obteve aquilo que eles se esforçam tanto para nunca precisar: o perdão de Deus. Eles condenavam - mesmo que não executassem a condenação - porque estavam eles próprios acima de qualquer condenação. Tanto é que condenaram Cristo.

A auto-justificação que temos hoje em dia não se baseia na Lei. Mas o resultado é o mesmo: enquanto os escribas e fariseus justificavam-se pelo cumprimento da Lei, nós nos justificamos pelo ódio, porque é ele que sustenta a condenação. E é assim que ele se salva pela condenação do outro.
Mas este ódio precisa ser alimentado, pois se ele desaparecer, a condenação também desaparece, e a auto-justificação se baseia nesta condenação. E o alimento do ódio é a ofensa.

Será que temos condições de condenar até mesmo os condenáveis escribas e fariseus? Mesmo que façamos do ódio uma nova lei?

Mas voltemos àquele "você" hipotético dos dois primeiros parágrafos (que, portanto, não se referiam a você, e sim a um "você" hipotético que pode ser qualquer um mas é óbvio que não é necessariamente você). Você decidiu perdoar ao invés de condenar.

Isto não impede que você tenha sentido o natural e aceitável ódio pela ofensa sofrida. Porém o perdão dissipa o ódio, porque este perdão é uma espécie de "deixa prá lá". Aqui surge um perigo: o "deixa prá lá" pode permitir que o ofensor continue lhe ofendendo ou então ofenda os outros.
É urgente não confundir "deixa prá lá o ódio" com o "deixa prá lá a ofensa". Se esta confusão acontece, o perdão vira um passe-livre para a ofensa e o ofensor vai se sentir à vontade fazendo isto.
O perdão implica tanto em deixar prá lá o ódio quanto em combater a ofensa. Sem combater a ofensa, o perdão tem o mesmo resultado que o ódio, só que neste caso o justificado é o ofensor.

Então temos a conservação do ódio condenador em benefício da auto-justificação; temos um tipo de perdão cúmplice do ofensor; e o perdão que "não esquece o que lhe fazem" (citando um trecho da música Mal Necessário de Ney Matogrosso). É necessário (não necessariamente um mal) não esquecer o que lhe fazem. E observe que o ódio também conserva a ofensa.

O ódio às vezes pode não estar servindo para a auto-justificação, pois a obstinação do ódio em manter a memória da ofensa, embora seja para se alimentar desta memória, é um meio de conservar a ofensa e assim poder combatê-la. Mas este ódio inevitavelmente fará de quem odeia alguém auto-justificado, porque a auto-justificação é amparada pela condenação, que conserva o ódio, que conserva a ofensa.

Cristo perdoou o paralítico mas não disse, como no caso dos dois cegos que imploravam a piedade de Cristo, "a tua fé te salvou". No caso do paralítico ele disse apenas "teus pecados estão perdoados". Se o paralítico se salvou ou não não vem ao caso. O que vem ao caso é o perdão gratuito de Cristo - pois o paralítico não fez nada para obter o perdão (o que revoltou os fariseus e escribas), ele nem mesmo pediu perdão, aliás, ele não fez absolutamente nada antes de Cristo mandar que ele pegasse a cama e andasse.
É este perdão de Cristo - gratuito e incondicional - que tanto dissipa o ódio quanto conserva a ofensa sem conservar junto o ódio.

Perdoamos os outros porque Cristo nos perdoou e ainda assim podemos nos insurgir contra a perpetuação da ofensa. Quando o perdão se limita a deixar prá lá, o perdão perpetua a ofensa, e quando se insurge contra a ofensa sem perdoar, se alimenta o ódio que também é uma ofensa, quer ele ajude a destruir a outra ofensa, quer não.

Isto talvez explique a escalada de ódio sem precedentes nos tempos que correm hoje: entre a cumplicidade e a auto-justificação farisaica, não é tão fácil perceber que a solução é o perdão.

8 de dezembro de 2019

 

Domingo da segunda semana do Advento (solenidade da Imaculada Conceição de Maria)

A Igreja transmite fielmente a verdade e quem lhe dá esta fé (no sentido mais comum do termo, neste caso) pode dizer, com segurança, que Maria foi concebida sem pecado - não por suas virtudes, que de qualquer modo seriam maiores do que as nossas até se tivesse sido concebida com o pecado original, mas pela gratuita bondade da decisão de Deus.

Porque Deus fez assim com ela e não com todo mundo ou, ao menos, com alguns? A Igreja explica que, como ela iria conceber o Filho de Deus, convinha que Maria fosse Imaculada, dada a singular intimidade que só ela teve com Cristo - concebê-lo e levá-lo nas entranhas do seu corpo durante mais ou menos nove meses e depois alimentá-lo com o leite fluído do seu corpo.
Se Maria não concebeu - obviamente - a divindade de Cristo, ainda assim ela concebeu o corpo humano de Deus; dizendo o mesmo em outras palavras: ela forneceu a matéria humana que formou cada célula do corpo do Filho Único de Deus.
É claro que Deus poderia ter encontrado outras alternativas, como "isolar" o pecado de cada um dos componentes fornecidos pelo corpo de Maria, neste exemplo, contaminado pelo pecado original; poderia ter implantado já um feto santo protegido do pecado da mãe; poderia ter feito surgir o bebê já formado no quarto ao lado; etc.; mas levar as suposições sobre o poder divino por estes caminhos seria o mesmo que ficar se perguntando porque Deus não fez os besouros com um membro extra no seu casco para poderem se desvirar quando caem de mau jeito, ou uma atmosfera mais amigável (pro ser humano) à Lua e à Marte para facilitar a exploração espacial e, em última instância, poderíamos questionar porque Deus permitiu o pecado original, quando poderia ter dado à árvore uma proteção mais eficiente do que a frágil confiança no bom uso da liberdade de Adão e Eva.
Só que levar o pensamento por estas águas hipotéticas é tão interessante e útil quanto discutir, como escreveu Luís Fernando Veríssimo, quantos anjos podem se equilibrar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha.

Dando fé à Igreja, pode-se comparar Maria com Adão e Eva no que diz respeito à obediência a Deus: concebidos qual Maria sem pecado original, Adão e Eva disseram não a Deus; Maria, nas mesmas condições disse "sim". E, guardadas as diferenças entre as personagens, comprometer-se com uma gravidez é mais complicado do que comprometer-se com a abstinência de uma coisa que nunca havia sido provada.

Então o significado deste dogma - a Imaculada Conceição - tem mais a ver com conceber uma nova perspectiva, agora positiva, sobre a humanidade, do que conceber um roubo à redenção de Cristo. Até porque uma redenção prévia ao ato redentor é uma ideia mais elegante do que uma confusa ideia de Deus agindo como um manipulador genético no ventre de Maria.

A navalha que Ockham sugeriu à ciência parece já ter sido largamente utilizada por Deus nos milagres narrados ao longo dos quatro evangelhos: quando poderia ter dividido as águas, Cristo preferiu caminhar sobre elas; quando podia ter feito chover mais Maná no deserto, ele preferiu multiplicar os pães que já tinha; até mesmo o imposto, cujo milagre da eliminação muita gente sonha hoje em dia, Cristo preferiu pagar com a ajuda de Pedro, de um peixe e de um discreto milagre do que não pagá-lo milagrosamente - e mesmo deixando claro que era injusto, sujeitou-se à injustiça.

A Imaculada Conceição de Maria que a Igreja celebra hoje não tem a intenção de ser uma festa da idolatria, mas sim de celebrar, por um dogma, a restituição da confiança de Deus na humanidade. Não que Deus dependesse de Maria para confiar, mas nós dependemos deste tipo de sinal para descobrir a renovada confiança de Deus no ser humano - restituída, portanto, pelas ações de uma mulher tão gente como a gente quanto Maria.

5 de dezembro de 2019

 

Sábado da primeira semana do Advento

O particular deve servir ao coletivo tanto quanto o coletivo deve servir ao particular. E vice-versa.
Isto não significa que indivíduos inúteis devam ser eliminados ou excluídos, nem que as coisas públicas que não me afetam devam ser ignoradas ou encerradas.
Mas significa que os outros valem tanto quanto eu (no caso de um ego inflado) e que eu valho tanto quanto os outros (no caso de falta de autoestima).

Cristo olha para as multidões cansadas e se sente insuficiente para dar conta de toda a demanda delas. Em seguida apela para que peçam "ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita" (Mt 9,38) e escolhe doze discípulos para trabalhar em prol das multidões.
E hoje faltam padres, faltam freiras, falta tudo - mas não é porque faltem trabalhadores para a colheita. Pois observando atentamente em volta, há muita gente trabalhando, e não é difícil imaginar quantos mais estão trabalhando fora das nossas vistas.
Cristo, o Filho de Deus, já teve o seu pedido atendido assim que o formulou (pois ele não esperou muitos capítulos para escolher os Doze depois de pedir por mais trabalhadores ao dono da messe). E o dono da messe continua mandando levas e mais levas de trabalhadores. Mas o que eles fazem? Onde estão eles?
Eles estão aí, cultivando as suas colheitas, trabalhando seus terreninhos, vendendo aquilo que colhem, cidadãos exemplares cuidando das suas vidas sem incomodar absolutamente ninguém.
Enquanto isto, a colheita dos outros, ou melhor, de um Outro em particular, continua imensa e mal povoada de trabalhadores.

Não faltam trabalhadores. Falta apenas que que eles olhem para Cristo e vejam, nos olhos dele, a compaixão pelas multidões cansadas e abatidas - aliás, tão cansadas e abatidas quanto eles.

4 de dezembro de 2019

 

Sexta-feira da primeira semana do Advento

A fé é uma questão muito intrigante. Para além da Teologia da Prosperidade e d'O Segredo, temos Jesus perguntando nos evangelhos, como neste de hoje, se a pessoa que lhe pede um milagre acredita que Cristo pode fazê-lo.

A resposta sempre é sim, e eis a cura.

Porém não aparecem, nos quatro evangelhos, casos de quem tenha pedido, ouvido a pergunta e respondido "não", ou de quem tenha respondido "sim" e ouvido de volta "mas eu não posso" - o que acontece muito em nossas vidas. Pois muitas pessoas pedem muitas coisas, e elas não vem.

Muitas vezes vem, mas demoram, ou vem de um jeito inimaginável - mas quantos desejos e pedidos já foram negados por Deus?

Uma das explicações mais correntes à pergunta de Cristo é que ele concede o que se deseja a quem acredita no poder de Deus: "vós acreditais que eu posso fazer isso?" (Mt 9,28).

Sim, Deus pode, pode isso e muito mais (basta ver o mundo criado, o ser humano salvo na Cruz, a Ressurreição de Cristo, etc.) Quem duvidaria do poder de Deus?
Então esta é uma boa explicação, muito correta.

Mas, além disto, o "eu posso?" talvez tenha também um sentido parecido com "será que isso convém?" ou "será que está correto isto que você está me pedindo?"
Se pedirmos ao dono dos anúncios do tipo "trago a pessoa amada em três dias", ele não vai perguntar se isso é correto, se pedirmos "um carro do ano e muito dinheiro" também não - ora, ou talvez pergunte, sim!; talvez até mesmo se negue a fazer algo que julgue errado. Mas Cristo sempre pergunta, em todos os casos, em todas as vezes - a nós, hoje em dia, quando lhe pedimos algo: "vós acreditais que eu posso fazer isso?"

Deus tem poder para realizar os nossos desejos mais extravagantes, mas será mesmo que ele pode, por exemplo, se ocupar mais em providenciar férias na Disney do que em providenciar comida para os esfomeados?
Não é porque Deus tem o poder que ele pode, ou melhor, não é porque Deus tem o poder que nós podemos presumir que ele pode tudo o que queremos. Ele pode o que quer, e o que ele quer é o melhor. Por isto que o que ele não pode, não é porque está além da sua capacidade, mas é porque o que pedimos está aquém do melhor que ele pode oferecer.

Por isto sempre convém, junto com o pedido, perguntar-se "será que Deus pode fazer isto?" não como dúvida do poder de Deus, e sim para verificar se o pedido está em conformidade com a vontade de Deus.




 

Quinta-feira da primeira semana do Advento

Ghandi e Sócrates são dois personagens que ilustram, do ponto de vista cristão, a ação de Deus que ultrapassa quaisquer fronteiras visíveis da Igreja: um pacifista e um sábio politeístas, cujas vidas e ideias testemunham princípios e valores que coincidem muito com princípios e valores cristãos. Pagãos que, apesar disto, podem facilmente ser chamados de "cristãos na prática" - pelo menos para efeitos ilustrativos.

Aí lemos no evangelho de hoje que "quem ouve estas minhas palavras [as de Cristo] e as põe em prática é como um homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha." (Mt 7,24) e imaginamos que pessoas como Ghandi e Sócrates construíram suas casas sobre a rocha. E poderíamos pensar que basta ser gente boa e corajosa como os dois grandes nomes.

Mas sem desmerecê-los e nem à ação invisível de Deus fora dos limites (visíveis) da Igreja, nobres pessoas cuja prática coincida com as palavras de Cristo podem até servir, entre outras funções, como um puxão de orelha aos cristãos ("tem pagão que é mais cristão que os que vão à igreja!!!!"), mas não são fontes de inspiração para os cristãos.

Pois neste evangelho, em que Cristo pede que traduzamos suas palavras em prática, ele também pede, indiretamente, que o ouçamos antes de praticá-las.

Ele exemplifica duas situações que ilustram o significado das relações entre ouvir e praticar: na primeira, quem ouve suas palavras e as pratica foi identificado com quem construiu sua casa sobre a rocha, um fundamento firme e estável, enquanto que quem ouve sem praticar se identifica com quem construiu sua casa sobre a areia, que não sustenta nem um puxão mais forte.

Muitas vezes podemos concluir que a fé em Deus resulta - ou deve resultar - em uma prática cristã, o que é uma conclusão correta, mas parece que aqui aparece um elemento novo nesta relação entre fé (as palavras de Cristo) e prática: está fundamenta aquela. Então este "sistema" fé-prática parece se estruturar como a fé sendo a precursora de uma determinada prática, e uma prática que estabiliza e sustenta a fé.

A prática das palavras de Cristo é mais do que um resultado, uma consequência: ela é também os muros da cidade fortificada mencionada por Isaías (Is 26,1) que protegem a fé. Se é verdade que a fé é mais importante que a prática, também é verdade que sem a prática a fé se esvai como a casa construída sobre a areia.

Pessoas como Ghandi e Sócrates podem até estar sobre uma rocha mais firme do que muitos cristãos, mas é como se vivessem sobre esta rocha à mercê do tempo, desabrigados sobre um firme piso nú sem sentido. Entre eles e aqueles que dizem "Senhor, Senhor" mas não praticam o que Cristo disse, devem se posicionar os cristãos, lembrando-se de fundamentar bem a sua fé com a prática - e também de oferecerem a casa que são as palavras de Cristo, tanto aos que vivem sobre uma rocha nua, quanto aos que vivem sobre a areia, abrigados ou não.

3 de dezembro de 2019

 

Quarta-feira da primeira semana do Advento

Os sentimentos se parecem com água e comida em muitas coisas.

Eles podem ser deliciosos ou asquerosos, além de poderem ser, os mesmos sentimentos, asquerosos para uns, deliciosos para outros e vice-versa.
O gosto ou o asco por determinado sentimento também pode mudar com o tempo, com o qual também a sua posição na nossa hierarquia de gostos pode mudar.

Sentimentos artificiais, com aroma "idêntico ao original", podem diminuir nossa sensibilidade ao sabor original.
Os conservantes e os aditivos químicos podem também nos deixar incapazes de sentir o sentimento em si e reorientar o paladar do nosso coração para os próprios artifícios de sabor.

Às vezes um sentimento pode ser delicioso e fazer mal à saúde, ou pode ser intragável mas ser um verdadeiro remédio. Em qualquer caso, pode ser que faça mal em excesso e também faça mal se for muito pouco.

Alguns sentimentos podem realçar ou esconder o sabor de outros sentimentos, como o sal e o açúcar fazem com alguma comida ou bebida ruins de ingerir. E assim como o sal e o açúcar, podem substituir todo o resto nas nossas preferências, tornando-se desejos obsessivos, sem contar que a intensidade frequente de um sentimento pode fazer com que se torne quase impossível perceber o mesmo sentimento se apresentando de forma mais sutil e, eventualmente, mais saudável (como o excesso de açúcar dificulta a percepção da doçura cálida de uma cenoura, por exemplo).

Há sentimentos bons porém perigosos como alguns frutos-do-mar, e sentimentos enganosos como refrigerantes. Há também sentimentos embriagantes como bebidas alcoólicas e, assim como elas, alguns convém não misturar.

Sentimentos que estragam e apodrecem com o tempo; sentimentos que dão mais trabalho do que outros; sentimentos industrializados e orgânicos; sentimentos que uma Bella Gil das emoções poderia sugerir ser substituídos por outros e sentimentos rotineiros que nem se percebe mas cuja falta é muito sentida quando não tem. 

E assim como a água e a comida, eles acabam. Deixam lembranças que não alimentam mas são agradáveis. Alguns deixam lembranças horríveis.
Mas, também como a água e a comida, eles voltam, embora alguns os tenham em demasia e a outros reste a escassez.
Há muitos pobres em sentimentos. E ricos acumuladores emocionais que poderiam dividir o que tem.

Em tudo isto Cristo está presente, mas aqui, na escassez (que pode ser de sentimentos em geral, mas também pode ser de algum sentimento em particular, ainda que o coração esteja abarrotado de outros sentimentos), Cristo entra com maior urgência, pois quem multiplicou sete pães e alguns peixinhos (cf. Mt 15,34), também pode saciar a fome do nosso coração.

1 de dezembro de 2019

 

Terça-feira da primeira semana do Advento





 

segunda feira da primeira semana do Advento


 

Primeiro domingo do Advento de 2019

Nem toda a gambiarra é pecado, mas todo pecado é uma gambiarra. Adão e Eva, que não conheciam a morte, arriscaram facilmente a vida eterna em troca de uma fake news - a serpente disse a verdade sobre o conhecimento que daria comer o tal fruto proibido, e diante desta expectativa, radiosa como como a visão do fruto, foi fácil ignorar a parte do  "oh, não morreireis" (Gn 3,4), pois Deus disse a verdade, e a serpente, a mentira seguida de uma constatação verdadeira e inegável. A acusação mais ou menos frequente contra Deus, de que sonegou um conhecimento e por isso foi bem-feito que a serpente corrigiu esta sonegação é deste tipo de meia-verdade, aliás; pois Deus não sonegou o conhecimento quando permitiu que eles comessem tudo o que houvesse no Jardim do Éden nem escondeu a existência da árvore-do-conhecimento-do-bem-e-do-mal, mas só pediu que ninguém comesse do seu fruto. A gambiarra foi Adão e Eva julgarem que a serpente deveria ter razão sobre a morte, pois tinha razão sobre a expectativa de conhecimento contida no tal fruto.
A polarização política atual é apontada como um problema sério etc., mas é outra meia verdade do tipo "oh, não morrereis", pois encobre sistematicamente o ódio vivido como "ódio verdadeiro justificado" direcionado contra o outro polo, seja qual for este polo. O surto de histeria coletiva atual é fruto apenas do ódio, e não da polarização - embora o problema não seja o ódio pura e simplesmente, mas um ódio sistemático, explorado na divulgação de ideias que certamente farão o outro lado sentir muito ódio (seja o elogio ao AI-5, seja o empoderamento das minorias, por exemplo).
O retorno de Cristo, imprevisível como um assalto, é negado de duas maneiras: uma é não contar com a possibilidade deste retorno ou, igualmente, colocá-la muito no futuro, e a outra, colocando-a no presente.
Se Cristo não voltará ou se voltará daqui a 200 anos, então não há problema em ignorá-lo; e se Cristo voltará amanhã ou dentro de cinco minutos, também não há problema em ignorá-lo, pois não adianta fazer mais nada.
A verdade é que "na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá" (Mt 24, 44) e, portanto, o conhecimento do futuro, negado por Deus, é transformado em previsões de inovadoras ditaduras das minorias ou de reedições de velhas ditaduras.
Se Cristo estivesse a caminho, a uma distância indeterminada, seria mais lógico promover o bem que ele traz consigo. Mas como Cristo não vem ou já chegou  e a maioria ainda não viu - uma gambiarra em forma de crença - todo o ódio aparenta a leveza de uma inconsequência inócua: já que afinal conhecemos o bem e o mal, podemos impor o primeiro e combater o segundo, seja porque Cristo vai demorar, seja porque já não há amanhã.
Entre o imprevisto retorno e o improviso do ódio, ceder ao medo é tomar partido da serpente das meias-verdades reeditadas como as fake news "de que tanto tem se ocupado a imprensa" (O Circo Místico).