A natureza dispensa apresentações no que diz respeito à sua encantadora beleza exuberante que, ainda por cima, é acompanhada de todos os outros benefícios que nos dá além desta beleza. Quem crê em Deus vê em toda esta beleza e neste socorro que a natureza nos proporciona a manifestação de Deus, o que certamente dá um sentido renovado à natureza, à beleza e ao socorro que ela nos presta.
Ocasionalmente o crente procura utilizar-se disto, a beleza da natureza, como um argumento em prol da existência de Deus, especialmente quando tenta convencer algum cético. E pode até ser que aqui e ali ele funcione. No livro Cérebro e Crença o autor, um cético, aliás, narra o testemunho de um cientista, outrora também um cético, que foi forçado a aceitar a existência de Deus diante da visão maravilhosa de uma cachoeira congelada.
Mas, no geral, o crente não percebe que esta associação entre a gloriosa beleza divina e sua manifestação na natureza quase sempre só funciona porque, a princípio, ele já acreditava em Deus e, se esta beleza reforça a sua fé, não foi o que o levou a ela.
A beleza da natureza é só um dos aspectos magníficos dela, e todos eles remetem a Deus justamente para quem crê nele: a proteção, a beleza, o socorro, a força e o poder que chegam até nós pela natureza são reflexos da proteção, da beleza, etc., de Deus, e quem crê nele deveria observá-la mais em prol da própria fé do que em prol da conversão alheia.
Há uma prece, rezada pela Igreja a cada quatro domingos pela manhã, que pede a Deus "mostrai-nos vossa bondade, refletida em todas as criaturas, para contemplarmos em todas elas a vossa glória." Esta prece resume o olhar cristão sobre a natureza, cuja própria glória é reflexo da glória de Deus, e se não é só isto que nos coloca sob o dever de protegê-la, é a partir disto que se coloca este dever.
Mas a prece se estende a todas as criaturas, o que inclui os seres humanos, seja por também serem parte da natureza (ainda que alguns a destruam), seja por também serem, afinal, criaturas de Deus.
Como nós também somos reflexos desta glória de Deus, o amor-próprio fundamentado nela fica mais bem assentado do que fundamentado em qualquer outra coisa. Você não é reflexo da glória de Deus pelo que faz, e sim pelo que Deus fez (ou seja, você), mas também pode fazer-se reflexo desta glória de Deus em si, e é nisto que consiste o sentido de reencontrar-se.
Além disto, assim como você, o outro, independente de crença ou de qualquer outra condição, também é reflexo desta glória de Deus, e é nisto que consiste amar o próximo - inclusive aos inimigos, e Cristo deixou isto bem claro porque o infeliz o desgraçado o inimigo também é uma criatura de Deus e, pelo menos por isto, digno de ser amado.
Se dependemos da proximidade com Cristo para podermos amar - seja a si, seja aos outros, ver em todos o reflexo da glória de Deus (mesmo em quem tenta escondê-la o quanto for possível) assegura ao olhar que inclua também a dignidade alheia, pois às vezes o que é feito em nome de amar o próximo é justamente o contrário. Todo o amor e o respeito que se tem para com Deus leva, necessariamente, ao amor e ao respeito para com o outro, e se não for assim, a própria religiosidade se transforma em uma obra de ficção de péssima qualidade.
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Jesus Cristo sofreu por nós para que este sacrifício saldasse nossas dívidas e ofensas a Deus, então a partir disto, temos o nome limpo diante Dele. Também a partir disto, todo o sofrimento que vivemos é o sofrimento de Cristo, que vivido apenas em nós seria somente um sofrimento inútil e sem sentido, mas atrelado a Cristo (por ele mesmo), este sofrimento passa a ter algum sentido - qual seja, a salvação do mundo. Eu não sei se os sofrimentos de uma determinada pessoa valem pela salvação dela ou se funcionam mais ou menos como uma vaquinha em que todos contribuem com o seu sofrimento e Deus os redistribui convertidos em graças para quem precisa - ou, ainda, se são as duas coisas; no fim pode ser talvez não seja nada disto e baste saber que nossos sofrimentos estão atrelados ao de Cristo e pronto. Se existem santos que procuraram ocasiões para sofrer voluntariamente (como aqueles que pediam a Deus para serem mártires, indo pregar em locais de conflito ou simplesmente indo fazer qualquer coisa em locais onde era arriscado declarar-se cristão), esse exemplo deles, em particular, eu não sigo. Primeiro porque declarar uma covardia requer outro tipo de coragem (lições de poesia aprendidas no Poema em Linha Reta, aqui) e tomara que Deus leve em conta esta coragem em declarar a covardia; mas também eu tenho a impressão de que hoje em dia não é necessário sair correndo atrás do sofrimento, porque ele está a nossa espreita em todos os cantos. Certamente há os sofrimentos menores, quase patéticos de tão ridículos (como a chave que quebrou na fechadura, e pelo lado de fora; a mistura que roubaram da marmita na geladeira da firma; a água que faltou bem na hora do banho, e ainda por cima religaram depois que a pessoa deu um jeito e já estava saindo de casa; coisas assim sem gravidade ) que, no entanto, podem acumular-se no coração de alguém propenso a guardar nele os sofrimentos, ou até mesmo no de alguém que, sem esta propensão, está numa fase assim. E há também os maiores sofrimentos, e nem todos dão boas manchetes no noticiário. Qualquer um destes sofrimento está à espreita de qualquer um, e se é verdade que para cada um ele vai ter um peso diferente, também é verdade que no fim é inevitável passar por sofrimentos. Então, por isto, acho que não é necessário sair correndo atrás de problemas, porque eles já estão por aí nos rondando. Mas entre todos estes problemas, há aqueles causados por conta das condições sociais estabelecidas em nosso meio: o trabalho precarizado, a violência que os governantes condenam (e às vezes nem isto) ao mesmo tempo em que se omitem em coibir, a seletividade da violência que coíbem quando o fazem, a omissão quanto às mazelas na estrutura da educação e da saúde pública, aliás, a omissão do governo em geral, que agora deixou de ser vergonha mas virou um projeto político para ser implantado, em nome do combate ao comunismo e da eficiência do governo, a extorsão, legalizada ou não, dos preços e dos juros quando os preços caem, a conivência da população com tudo isto, etc. Quem padece destes sofrimentos, está sofrendo com Cristo e este é o único sentido que é possível dar a eles. Mas sofrer com Cristo não significa deixar que estas condições sociais permaneçam assim, opressoras e homicidas. Quem sofre com a precariedade está se santificando, mas quem promove esta precariedade não está santificando nem aos outros e nem a si mesmo, nem que estivesse fazendo isto na melhor das intenções de santificar os outros (mas muito raramente a perversidade de quem oprime é acidental). Se fosse assim, o príncipe dos apóstolos seria Judas e não Pedro, e os maiores santos seriam os carrascos de Cristo. Por isto que combater estas estruturas opressivas, e também se policiar para não dar-se licenças pontuais de reproduzi-las nas próprias ações cotidianas, é, como o é viver os próprios sofrimentos juntamente com Cristo, unir os próprios esforços aos de Deus para salvar e redimir a humanidade. |
O IHU publicou uma reportagem sobre a audiência do Papa Francisco com uma comunidade de católicos LGBT onde ele disse (já no título da reportagem): "A Igreja ama os vossos filhos do jeito que eles são, porque são filhos de Deus". Nos comentários da publicação do facebook, não há, felizmente, manifestações particularmente homofóbicas (há um "Esse aí [provavelmente o papa] joga pra torcida. Só não vê quem não quer..." que não chega a ser necessariamente homofóbico, mas levemente "franciscofóbico", o que é mais ou menos o assunto deste post).
Na verdade o motivo deste post é outro comentário, que diz "Papa repete o Catecismo da Igreja Católica redigido por Ratzinger e promulgado por João Paulo II." Ainda que diga uma coisa óbvia, pode muito bem ser um comentário de apoio a um papa que não só remete à fidelidade à doutrina, como reconhece que o papa Francisco continua fazendo o mesmo trabalho e seguindo na mesma linha dos dois papas anteriores, como todos os papas, por sinal.
Mas eu me acostumei a compreender o jeito que as pessoas se referem a Bento XVI como uma indicação de apoio ou crítica (com grandes riscos de estar errando na avaliação, é claro): apoiadores (quase sempre conservadores e saudosos da Igreja das catacumbas) se referem a ele pelo nome papal, críticos, por Ratzinger, um nome associado (na minha imaginação fértil) à perseguição à teologia da libertação, a Leonardo Boff, à Congregação para a Doutrina da fé enquanto sucessora do Santo Ofício, etc. Então eu interpretei este comentário como uma crítica a Bento XVI e, por extensão, a João Paulo II, ao papa Francisco e também ao catecismo.
Já li em algum lugar (e acho que foi em outro artigo do IHU) que o atual catecismo da Igreja está impregnado da mentalidade retrógrada e conservadora de Bento XVI, mentalidade que contava com a simpatia e o apoio de João Paulo II, e o exemplo era a condenação à masturbação, no parágrafo 2352 do catecismo, como um pecado grave.
Eu não sei sobre a mentalidade retrógrada de Bento XVI e a simpatia de JPII, mas arrisco dizer que o primeiro é contraditório e complexo como todo mundo o é, liberando missas em latim para delírio dos conservadores, e renunciando para surpresa de todos, numa atitude nada conservadora, por exemplo. E João Paulo II é um personagem ainda mais complexo. Acho estes posicionamentos pró-um-papa ou anti-outro-papa um tanto quanto rasos superficiais limitados aborrecedores, porque isto vira um jogo de Super Trunfo que funciona bem com aviões ou carros, e mais ainda na sua melhor evolução, que foi Pokémon, mas não com figuras como papas ou padres (porque há também o Super Trunfo dos padres, que faz uma disputa entre "cartas" como Júlio Lancelotti e Fábio de Melo, por exemplo). Só que eu não queria escrever sobre papas e padres, e sim sobre o meu Super Trunfo particular, o arriscado Super Trunfo dos pecados (pois sempre há o risco de errar a avaliação, mas como eu não vou ser lembrado no futuro pelas minhas avaliações corretas sobre coisa nenhuma, é um risco que eu já assimilei).
Masturbação e homossexualidade são pecados sim, mas não há nada na doutrina da Igreja que sirva para justificar a homofobia ou acusar a Igreja de um preciosismo como combater a masturbação, a não ser na medida em que qualquer pecado, seja ele um homicídio ou um palavrão, deve ser combatido. Só que ao mesmo tempo em que nenhum pecado é defensável, há pecados piores (e outros ainda muito piores) e pecados menos relevantes. Em algum lugar do catecismo, e eu não vou ir lá procurar agora o parágrafo, há esta distinção entre graus de gravidade dos pecados e, também, entre circunstâncias agravantes e atenuantes de um mesmo pecado, com a ressalva de que não se deve negligenciar os pecados mais irrelevantes por um motivo que pode ser resumido no ditado "de grão em grão, a galinha enche o papo".
Estes dois pecados servem como exemplo de como é possível distorces a doutrina em favor de um preconceito ou de outro, pois não há nada no catecismo que condene ao inferno nem homossexuais, nem quem se masturba.
No já mencionado parágrafo 2352, a masturbação é uma grave desordem que não tem como ser uma coisa positiva; no parágrafo 2357 os atos homossexualidade são qualificados como "intrínsecamente desordenados". Como Deus se chama (citando não sei qual vídeo do Porta dos Fundos) "Deus e não bagunça", qualquer desordem é algo a ser evitado. Mas nem a inclusão da masturbação na lista de pecados justifica uma campanha contra uma desordem (no máximo, justifica organizar o que está bagunçado, e o perigo que há na masturbação consiste justamente em deixar tudo sem resolver), nem muito menos a desordem dos atos homossexuais justifica as cruzadas anti-LGBT que se promove "em nome" da doutrina e da virtude.
A pornografia, por exemplo, "é um grave atentando contra a dignidade das pessoas" (no parágrafo 2354), e a fornicação, "gravemente contrária à dignidade das pessoas" (no parágrafo 2353), ou seja, contrariedades graves à dignidade são piores do que desordens, pelo menos dentro dos meus achismos, que, aliás, são o fundamento deste texto. Por isto fica difícil explicar que haja tanta atenção para uma falácia como a "cura gay" e não exista uma mobilização tão grande e espalhafatosa contra algo muito pior (um "grave atentado") como a pornografia, a não ser a instrumentalização da doutrina em nome de um preconceito, o que dá apenas um verniz religioso a uma atitude criminosa e contrária ao cristianismo.
No fim das contas, a Igreja e a sua doutrina acabam servindo para fins completamente alheios aos de Cristo, que afinal é a origem dela, e os cruzados conservadores não percebem o quanto são aliados de quaisquer detratores da Igreja (que eles sonham estar defendendo contra as trevas, o que é um trabalho de Cristo e não de qualquer outra pessoa), pois atribuindo-se a condição de paladinos da sã doutrina,e da moral, deturpam estas duas coisas e, embora justifiquem as críticas contra a Igreja, aumentam e alimentam estas críticas mais ou menos como o combustível alimenta um incêndio.
É verdade que os traidores, os corruptos e quem arrecada impostos recebe afagos, seja daquele que se beneficiou de uma traição, seja quem lucra com a corrupção (que dificilmente é um ato solitário) ou com o dinheiro arrecadado. Mas são afagos pontuais, ao contrário da vileza cotidiana apontada pelos outros.
Exceto por posturas políticas indefensáveis (como a relativização de coisas como o racismo ou a homofobia, por exemplo), em ambos os lados políticos há gente desprezada apenas por seu pensamento político (no mínimo, o desprezo do lado antagônico). Também há condições pessoas que podem levar alguém a ser injustamente desprezado - para aproveitar o exemplo dos parêntesis acima, os negros e os homossexuais, e também as mulheres, os imigrantes, os idosos, etc. Há pessoas desprezadas por algum defeito físico, ou por extrapolarem os padrões inalcançáveis de beleza, por causa do status social, etc.
Na lista acima é possível perceber a diferença que há entre ser desprezado e ser desprezível: uma posição política, uma diferença com qualquer padrão ilusório de como se deve ser, podem levar ao desprezo alheio; já São Mateus certamente era alguém desprezível pela atividade que exercia.
Embora o Barão de Itararé tenha eternizado a ideia de que de onde menos se espera, daí é que não sai nada, mesmo alguém tão baixo como São Mateus (embora este apequenamento dos publicanos tenha sido marcado em Zaqueu, tão baixo que precisou subir em uma árvore para conseguir ver a Jesus) foi capaz de converter-se e se tornar não só um apóstolo, mas também um Evangelista (um círculo ainda mais restrito do que o dos apóstolos); praticamente um integrante da nata celestial, uma surpresa para quem não tinha a menor perspectiva de ser lembrado no futuro, a não ser anonimante como integrante de uma classe desprezada.
Mesmo que ele não tenha roubado ninguém, ainda assim era uma espécie de pelego (pelo menos no sentido de que trabalhou, antes de ser chamado por Cristo, para os opressores). Isto também reforça que, mesmo se tratando de pessoas desprezíveis, elas não devem ser desprezadas (embora suas posturam devam ser combatidas), quanto mais não se deve desprezar quem quer que seja por puro preconceito,
«Como se tudo isto [as listas das outras três postagens anteriores desta semana] fosse pouco, a bem da verdade, deve-se reconhecer que existe uma série de textos e de conceitos teológicos divergentes na Bíblia, que são mais chocantes. ... Vejamos alguns exemplos [retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 222 e 223]:
* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de "verdade" contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), "verdade" implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser "fiel, estável, merecedor de confiança", conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.
Por favor leia também o alerta depois do fim da lista :)
«... alguns exemplos de discrepâncias entre textos nos quais supostamente Deus teria revelado algo que, depois de tudo, resulta incoerente com outra revelação ou informação [retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 220 a 222].
* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de "verdade" contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), "verdade" implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser "fiel, estável, merecedor de confiança", conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.
Exemplos de contradições e incoerências entre textos da Bíblia (retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 217-218). Por favor leia o alerta depois do fim da lista:
* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de "verdade" contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), "verdade" implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser "fiel, estável, merecedor de confiança", conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.
Exemplos de erros histórico e científicos da Bíblia (retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 216 a 217). Por favor leia também o alerta depois do final desta lista:
* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da
Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da
Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no
qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso
conceito de "verdade" contemporâneo implica a coerência entre o dado
empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos
foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos
oralmente), "verdade" implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de
ser "fiel, estável, merecedor de confiança", conforme o que o autor diz
na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.
No final do capítulo 3 (Cristãos: admirável mundo novo) do seu livro Em
nome de Deus, Karen Armstrong descreve o início do combate, nos EUA,
entre a interpretação literal e a interpretação crítica da Bíblia, um
combate que ainda se faz presente hoje em dia quando passagens do Antigo
Testamento são utilizadas como fundamento para coisas desumanas como,
por exemplo, a homofobia; quando críticos da religião em geral e ou do
cristianismo em particular utilizam as contradições, incoerências e
erros científicos (biológicos, históricos, físicos, etc.) na Bíblia para
tentar invalidá-la e, por conseguinte, invalidar a religião que a
adota; e quando cristãos com posições políticas divergentes entre si
(grosso modo, esquerda e direita) utilizam passagens bíblicas
discordantes tanto para fundamentar sua própria posição quanto para
atacar a posição alheia:
“Observando a discrepância entre a
hipótese de Darwin e o primeiro capítulo do Gênesis, alguns cristãos,
como Asa Gray (1810-88), amigo e colega do naturalista inglês, tentaram
conciliar a seleção natural com uma leitura literal do livro bíblico.
Posteriormente o projeto conhecido como Ciência da Criação se esforçaria
ainda mais para conferir ao Gênesis respeitabilidade científica. Tanto
empenho era inútil: como mito, a história bíblica não constitui um
relato histórico das origens da vida, e sim uma reflexão mais espiritual
acerca do significado profundo da existência, e sobre isso o logos
científico nada tem a declarar.
Embora Darwin não tivesse tal
intenção, a publicação da Origem [das Espécies] provocou uma escaramuça
entre religião e ciência, porém os primeiros tiros foram disparados não
pelos religiosos, e sim pelos secularistas mais agressivos. Thomas H.
Huxley (1825-95) na Inglaterra e Karl Vogt (1817-95), Ludwig Buchner
(1824-99) Jakob Moleschott (1822-93) e Ernst Haeckel (1834-1919) no
continente europeu popularizaram a teoria darwiniana, dirigindo-se a
vastas plateias para provar a incompatibilidade entre ciência e
religião. Na realidade pregaram uma cruzada contra a religião.” (Não
posso dar a referência de quais são as páginas onde se encontra o texto,
porque li ele em uma versão eletrônica pirateada, só sei que está no
final do capítulo referido acima)
Neste livro, Karen Armstrong
traça as origens mais ou menos paralelas do fundamentalismo nas três
grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo),
demonstrando (conforme o que eu entendi) que o fundamentalismo é uma
reação de defesa diante do medo causado pelas incertezas postas pela
modernidade. É uma síntese muito suspeita pelo fato de que eu li apenas
os capítulos referentes ao cristianismo, embora em outra oportunidade eu
tenha lido o livro todo (emprestado de uma biblioteca) e ele seja bem
mais abrangente do que as minhas observações sobre ele.
Segundo ela
(ou pelo menos segundo o que eu entendi do livro dela), as religiões
fundamentam-se em mitos, não no sentido de lendas ou folclore, mas sim
(os mitos) como forma de expressar aquilo que se quer dizer acerca de
questões existenciais, enquanto que a ciência fundamenta-se no logos,
que é a maneira racional de investigar e compreender a realidade.
Eu
não sei se mito e logos signficam estritamente isto (eu não fui
consultar o dicionário), mas de maneira geral o que eu entendi foi que a
religião expressa verdades usando mitos, enquanto que a ciência o faz
usando logos; além disto, o objeto da ciência é diferente do objeto da
religião, razão pela qual o conflito surge quando se tenta “cientificizar”
a religião ou então quando se tenta o contrário, fazer das explicações
científicas, explicações religiosas.
Ética, moral e religião não são
propostas científicas e seus pressupostos não são cientificamente
comprováveis (não existem impedimentos científicos para alguém andar nu
por aí, por exemplo), bem como as descobertas científicas não são menos
científicas por seu uso imoral (a imoralidade que há em qualquer chacina
não impediu a bomba atômica de funcionar em Hiroshima e Nagasaki, e nem
mesmo uma bomba atômica, em si, é da alçada religiosa, mas apenas o seu
uso contra seres humanos).
Como alguns fundamentalistas de hoje
utilizam trechos da bíblia para justificar seu conservadorismo, e seus
oponentes eventualmente também utilizam outros trechos para justificar o
seu próprio progressismo (como Jacques Ellul fez no seu maravilhoso
livro Anarquia e Cristianismo), sem contar os argumentos antirreligiosos fundamentados nas inconsistências da Bíblia, eu resolvi
copiar quatro listas que encontrei no livro A Bíblia sem Mitos, de
Eduardo Arens, com diversas incoerências, contradições e erros bíblicos,
que eu achei melhor copiar do que tentar resumir e explicar eu mesmo
(desprovido de aptidão literária como eu sou, isto iria virar algo
parecido com videocassetadas bíblicas, que não chegariam a parecer falta
de respeito religioso porque não seriam nem engraçadas, já que eu
também não sou humorista, mas resultaria em um texto apenas deprimente e
sofrível) e vão ser publicadas ao longo dos próximos quatro dias.
Eu tenho uma definição do que é ser católico, e provavelmente você também tem uma, e isto não é um problema. Mas usar as nossas definições de "ser católico" para acusar outra pessoa de não ser católica, ou, pelo menos, para acusá-las de não serem católicas o suficiente transformam o que era somente uma definição pessoal para nortear as próprias ações, em uma regra válida para todos - como se alguns soubessem mais que os outros.
Para isto que serve ler o que São Paulo escreveu na sua primeira carta aos coríntios. Neste trecho da liturgia de hoje, ele está falando sobre outra coisa, que é restringir-se de algo que não está errado para que aqueles que não entendem isto não pensem que pode tudo. O sujeito sabe que não tem problema em comer as carnes oferecidas aos ídolos, mas um outro sujeito ainda não entendeu isso, vê o primeiro comendo as oferendas e daqui a pouco vai pensar que não tem problema fazer suas oferendas também e tudo vira uma bagunça - em um tempo onde o cristianismo ainda estava se formando. Aquele sujeito esclarecido, que entendia que a carne oferecida aos ídolos era carne como qualquer carne e não faria mal comê-la, não entendia, porém, o quanto isto poderia escandalizar o seu irmão que não entendeu e, além disto, induzi-lo a aplicar esta liberalidade a outros aspectos para onde ela não valia. Por isto que quem "acha que conhece bem alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber".
Mais do que uma expressão de humildade socrática ("só sei que nada sei"), São Paulo está alertando os profundos conhecedores da Bíblia, das leis e da moral que isto não é tudo, e tudo isto pode ser mais nocivo aos outros do que se não soubesse nada.
Mas hoje esta ideia, de que quem acha que conhece ainda não sabe, serve muito para estes fiscais do catolicismo alheio, rapidíssimos em detectar o menor traço de comportamento não católico nos outros, inclusive nos padres e nos bispos - é curioso que a prática inquisitorial cotidiana, abandonada pela hierarquia católica, tenha sido voluntariamente assumida por alguns leigos, que proibidos de usar a fogueira (inclusive pela hierarquia que criticam), queimam os outros em "apologias" que podem até estar corretas, mas são incapazes de dialogar com qualquer um fora dos seus círculos de pureza doutrinária.
As doutrinas católicas servem para ser aplicadas na própria vida, mas não é porque são corretas que devem servir de régua para medir os outros. Se alguém acha que conhece bem alguma coisa, não sabe como deveria saber porque, no fim das contas, o sabe-tudo é Deus e não o nobre apologeta do século XXI, que não consegue entender que não sabe de tudo, inclusive sobre si, e também que não sabe (mesmo que ache que sabe) se pode condenar os outros à sua volta com sua correta régua moral - e é com esta régua, não o catecismo da Igreja, mas esta que ele usou durante a vida, que Deus vai medi-lo, incluindo aí aquilo que Ele sabe e nós não (cf. Lc 6,38, também na liturgia de hoje).
*Na imagem, o zelador Willie dos Simpsons, um verdadeiro escocês, em referência à falácia do escocês de verdade.
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A transitoriedade do mundo em que vivemos não nos dispensa dos cuidados que devemos ter com o planeta e com os outros, pois se nem Cristo sabe quando o mundo vai acabar (Mt 24,36), não nos cabe agir como se já estivesse tudo acabado.
A transitoriedade do mundo é, no entanto, a causa da sensação que temos de que não pertencemos a este mundo. Se inventarmos destinos que não sejam Cristo, perdemos este mundo e o definitivo. Mas se posicionarmos o nosso destino em Cristo precisamos lembrar que ele também é o caminho (Jo 14,6), um caminho que não é o mundo mas que está presente no mundo, e embora ele possa ser percorrido sejam quais forem as condições, se elas forem melhores, podemos evitar sofrimentos que, além de serem desnecessários, podem tomar proporções tão grandes que arriscam até mesmo nossa fé.
Até hoje há quem duvide que Maria tenha ficado grávida pela ação do Espírito Santo, e sugira que isto é uma metáfora, ou que, pelo menos, a ação do Espírito Santo não excluiu a necessidade de ela e José terem tido que fazer sexo para depois disto o Espírito Santo entrar em ação.
Apesar de dois mil anos depois ser possível, agora, abordar este assunto menos apaixonadamente (embora ainda seja possível ouvir risadas diante da ideia de uma Virgem Mãe), na época de Cristo a gravidez de Maria pareceu o que parece a muitos na nossa época: uma fantasia. Mas uma passagem bíblia sugere que, no tempo de Jesus, pelo menos os fariseus também não tenham aceitado que Maria tenha engravidado do Espírito Santo sem ter feito sexo com José. Mais do que isto, é possível que julgassem que ela tivesse traído José antes do casamento (isto é uma possível explicação para terem dito a Jesus, em Jo 8,41, que não eram filhos da fornicação).
Se isto for verdade, então sabemos que Maria teve que conviver com o peso de ter sido vista como adúltera e Cristo, de ser filho do adultério, o que naquela época tinha um peso muito maior do que podemos imaginar.
Mas não precisamos fazer muito esforço imaginativo para reproduzir este peso: basta ver como pesa sobre quem tem famílias "desajustadas" o julgamento de que a causa de quaisquer problemas sejam estes desajustes, e que estes desajustes sejam responsabilidade de ambos os pais e, especialmente, das mães, tantas vezes responsabilizadas pelo fracasso de qualquer relação amorosa, incluindo o casamento.
As pessoas que não se ajustam a quaisquer expectativas, aliás, são julgadas severamente, pois os "santos" de hoje não são capazes nem de se abster de atirar a primeira pedra, ao contrário dos pecadores que, apesar de tudo, não tiveram coragem de atirá-la na mulher que Cristo salvou de um apedrejamento.
Enquanto lemos histórias de santos que tiveram experiências religiosas sublimes como conversar com Maria, com Cristo, com algum anjo ou com outro santo (sem contar as experiências religiosas não-cristãs que se oferece por aí hoje), pouco fazemos para alcançar a epifania divina que há em simplesmente não julgar quem não é como esperaríamos que deveria ser (que, aliás, certamente precedeu quaisquer outras experiências místicas dos santos que viram e ou ouviram as coisas miraculosas que suas biografias nos relatam).
«Do ponto de vista da crítica bíblica, urge recordar que a primeira narrativa da criação do homem é cronologicamente posterior à segunda. A origem desta última é muito mais remota. Este texto mais antigo define-se como “javista”, porque para nomear a Deus serve-se do termo “Javé”. É difícil não se ficar impressionado com que a imagem de Deus nele apresentada encerre traços antropomórficos bastante marcados (entre outros, lemos nele que… o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida). Em confronto com esta descrição, a primeira narrativa, isto é, exatamente a considerada cronologicamente como mais recente, é muito mais amadurecida quer no que diz respeito à imagem de Deus, quer na formulação das verdades essenciais sobre o homem. Provém da tradição sacerdotal e ao mesmo tempo “eloísta”: de “Eloim”, termo por ela usado para denominar Deus.
Dado que nesta narrativa a criação do ser inteligente como homem e mulher, a que se refere Jesus na sua resposta segundo Mt 19, está inserida no ritmo dos sete dias da criação do mundo, poder-se-lhe-ia atribuir sobretudo caráter cosmológico: o homem é criado na terra juntamente com o mundo visível. Ao mesmo tempo, porém, o Criador ordena-lhe que subjugue e domine a terra: ele é portanto colocado acima do mundo. Embora o homem esteja tão intimamente ligado ao mundo visível, a narrativa bíblica não fala todavia da sua semelhança com o resto das criaturas, mas somente com Deus (Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus…). No ciclo dos sete dias da criação manifesta-se evidentemente uma gradualidade nítida1; o homem, pelo contrário, não é criado segundo uma sucessão natural, mas o Criador parece deter-se antes de o chamar à existência, como se tornasse a entrar em si mesmo, para tomar decisão: Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança…
O nível daquela primeira narrativa da criação do homem, embora cronologicamente posterior, é sobretudo de caráter teológico. Indica-o principalmente a definição do homem baseada na sua relação com Deus (“à imagem de Deus o criou”), o que encerra ao mesmo tempo a afirmação da impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao “mundo”. Já à luz das primeiras frases da Bíblia, não pode o homem ser compreendido, nem explicado até ao fundo, com as categorias deduzidas do “mundo”, isto é, do conjunto visível dos corpos. Apesar de também o homem ser corpo. Gn 1, 27 verifica que esta verdade essencial acerca do homem se refere tanto ao homem como à mulher: Deus criou o homem à sua imagem… criou-os homem e mulher. É preciso reconhecer que a primeira narrativa é concisa, livre de qualquer vestígio de subjetivismo: contém só o fato objetivo e define a realidade objetiva, quer ao falar da criação humana, do homem e da mulher, à imagem de Deus, quer ao acrescentar pouco depois as palavras da primeira bênção: Abençoando-os, Deus disse-lhes: “crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra”.»
João Paulo II, A Teologia do Corpo. 2ª catequese, 12/09/79 (Na primeira narrativa da Criação encontra-se a definição objetiva do homem), 3-4.
Disponível no site Teologia do Corpo.
A tristeza não pode ser tratada como uma erva daninha inconveniente que se infiltra no jardim das nossas felicidades, mas precisa ser cultivada como um dos sentimentos que, tal como os outros, é resultado da fertilidade dos nossos corações. Somente um coração anestesiado pode se livrar da tristeza, mas esta anestesia leva junto a alegria e assim o coração se torna uma pedra imóvel, indiferente e cega.
Um coração vivo está sujeito a tudo, mas caso se apegue à alegria, ela se transforma em uma promessa de tristeza porque mais cedo ou mais tarde vai passar. O contrário deste apego à alegria é uma fuga constante da tristeza, que assim nunca chega e, por isto, também nunca passa.
Exceto pelos casos clínicos de depressão, que devem ser tratados pela medicina, o melhor é sentir o que está disponível no momento sem tentar nem impedir, nem obrigar o sentimento a ficar.
Mas se a alegria forçada ainda se justifica como um palhaço que esconde suas próprias tristezas para deixar pelo menos os outros alegres, a tristeza forçada só serve para impressionar os outros, fingindo uma gravidade que não existe. E é esta hipocrisia que os fariseus cobravam dos discípulos de Cristo.
Se a Igreja determina momentos com rituais de tristeza é para que quem está bem possa lembrar que existem sofrimentos alheios pululando à nossa volta. Mas sempre há fariseus querendo fazer da tristeza um modo de vida, cobrando-a dos outros quando não conseguem atingir a alegria alheia que não podem suportar.
Imagem: Wikimedia
Filho do homem, eu te coloquei como sentinela da casa de Israel (Ez 3,16). É de se notar que o Senhor chama de sentinela aquele a quem envia a pregar. A sentinela, de fato, está sempre no alto para enxergar de longe quem vem. E quem quer que seja sentinela do povo deve manter-se no alto por sua vida, para ser útil por sua providência.(Das Homilias sobre Ezequiel, de São Gregório Magno, papa)
«De muitas pessoas também saíam demônios, gritando: “Tu és o Filho de Deus”. Jesus os ameaçava e não os deixava falar, porque sabiam que ele era o Messias.» (Lc 4,41)
Quem pode nos libertar com a verdade é Deus. Não somos suficientemente livres para nos libertarmos, nem conhecemos o suficiente para conhecer a verdade. Nem sempre parcialidade significa ser tendencioso: às vezes, como neste caso, somos parciais na medida em que conhecemos a verdade parcialmente. A existência de Deus é uma verdade, por exemplo, mas não é toda a verdade, e aí podemos avançar até a Trindade, a divindade-humanidade de Cristo que é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, daí, percorrer toda a doutrina da Igreja que é, toda ela, verdade, mas não é, ela, toda a verdade.
Não é um princípio que deva servir para encontrar as verdades extra-doutrinais, pois Deus não deixou cacos de uma verdade despedaçada distribuídos aleatoriamente pelo mundo, mas é um princípio que serve para termos cuidado com a verdade.
Mentir é um pecado e não mentir é ter cuidado com a verdade, e portanto, é óbvio (além de repetitivo), falar a verdade também é ter cuidado com a verdade.
Eu li aqui uma boa explicação de porque Jesus impedia os demônios de falarem que ele é o messias: os judeus da época esperavam um messias político, mais ou menos como o que os eleitores do Bolsonaro esperam dele, o salvador dos valores judaico-cristãos, ou algo parecido; mas Cristo, que realmente era o messias e nisto os demônios estavam falando a verdade, não oferece uma salvação política, e definitivamente não é militante de nenhum partido, e nisto a verdade que os demônios falvam confundia mais do que esclarecia.
Por mais que a verdade não deva ser escondida, e sim pelo contrário, deva ser proclamada, é necessário verificar bem porque certas verdades são ditas. Denunciar o pecado, por exemplo, é necessário, mas quais pecados estão sendo denunciados em detrimento de quais outros? Um pecado homossexual é pior do que uma fornicação heterossexual? Os pecados sexuais desqualificam as virtudes dos pecadores? E o pecado da ganância pode ser mais tolerável que os sexuais desde que o ganancioso pague o dízimo regularmente, seja em prol da construção de um santuário ou da alimentação dos pobres?
Eu também não sei. Mas sei que a verdade realmente liberta, como a luz que ilumina o caminho. Quando ela é proclamada como uma lança para machucar o outro, porém, apesar de ela não deixar de ser verdade (assim como Cristo não deixou de ser o Messias dependendo de quem o proclamasse), ao invés de iluminar, fere. E quando fere, se torna apenas um instrumento de dor. É verdade que Deus nos ensina, às vezes. pela dor, mas isto porque ele é Deus e sabe curar a ferida para uma condição melhor ainda do que a anterior. Algum de nós tem autorização de Deus para fazer o outro sofrer por algum motivo nobre?
Toda verdade jogada na cara com um tapa serve, provavelmente, apenas para satisfazer os desejos medonhos de quem a jogou, mas se Deus pode transformar até essa dor em salvação, isto não significa que quem a jogou tenha feito isto em nome de Deus. Significa apenas que transformou a verdade, iluminada e bela, em mesquinhas mini-certezas (vamos pedir piedade).
Photo by Miguel Bruna on Unsplash
A realidade espiritual é muito diferente de espasmos espirituais, que até podem inserir alguém na realidade espiritual, mas no fim são experiências físicas, psíquicas e emocionais.
A realidade espiritual não existe sem estar em paralelo com a realidade natural. Estes espasmos espirituais são saltos que não sustentam um vôo, e sempre se retorna à terra. Agora, vivida em paralelo com a realidade mais natural que - já - conhecemos, a realidade espiritual ganha corpo, talvez até asas, e certamente pernas. Ficar aqui é insuficiente, mas fugir daqui não leva a nenhum lugar, seja espiritual, seja natural (físico, emocional, psíquico).
Apesar deste paralelismo, a natureza não compreende o que é espiritual, e por isto só é possível falar da espiritualidade até certo ponto, a partir do qual só a experiência espiritual é posśível. Mesmo assim, esta experiência espiritual será uma fuga se não estiver em paralelo com a vida e o mundo cotidiano, mas é esta rota de fuga (da matéria e da alma) que seitas e aproveitadores deste tipo aproveitam para oferecer a título de espiritualidade.
A vida "funciona" sem espiritualidade nenhuma, mas tudo o que a sustenta tende a se tornar maior do que a vida, e acaba se degenerando na ganância de um crescimento ilimitado, não da vida, mas do que a sustenta.
E para que a vida vá além de uma função de vida, e para que a espiritualidade não se torne uma rota de fuga, é necessário que a vida e a espiritualidade aconteçam em Cristo, dentro de uma realidade renovada mas inserida dentro da realidade comum que conhecemos bem.
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