Divagar divagarinho

Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
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8 de março de 2011

 

Hipátia

Alexandria é um filme sobre como Hipátia morreu por causas políticas alheias a ela. Cristãos, judeus e pagãos vivem na Alexandria entre o final dos anos 300 e o início dos 400, e essa convivência é, digamos, harmonicamente tensa, até que todos briga, os cristãos destroem a biblioteca de Alexandria, depois a convivência pacífica juntamente com a tolerância religiosa e, por último, o Império Romano (o que não aparece no filme, mas foi assim, assumindo as rédeas das cidades, que o cristianismo, tanto para bem quanto para mal, assumiu o legado do já convalescente Império Romano e veja o filme porque ele é bom).

No filme, nenhum credo é tratado como santo ou vítima. Todos sofrem algum tipo de desrespeito e todos reagem de maneira desproporcional à ofensa sofrida. Os cristãos, porém, aparecem como levemente piores. Porque eles provocam. Eles não atiram a primeira pedra, mas irritam tanto que fazem com que os outros atirem, e depois não dão a outra face (um dos personagens, cuja morte foi o estopim da morte de Hipátia, responde que não devemos querer nos igualar a Deus, depois de um escravo dizer que uma pessoa o perdoou, mas ele próprio não consegue perdoar esta mesma pessoa...).

Não duvido que apareçam pessoas para dizer que o cristianismo é, hoje, do mesmo jeito que é apresentado no filme, e também que apareçam pessoas para dizer que o filme é um libelo anticristão. Essas pessoas se merecem e certamente ficarão muito felizes discutindo entre si, mas cada um faz do seu tempo o que preferir.

Acho que, da parte do cristianismo, o filme retrata um problema sério, uma variante do joio que vai crescendo junto com o trigo, digamos. Talvez uma ou duas variantes.

Uma delas é o excesso de zelo cristão que não raramente decai em cristianizar à força o maior número de pessoas possível. “Cristianizar”, e não evangelizar, catequisar ou converter. Aliás, cristianizar coisas é bom, mas fazê-lo à força não. Chamo de cristianizar essa transformação da cultura vigente em uma cultura em conformidade com o cristianismo. Tudo bem que a sociedade achasse por bem virar cristã, mas tudo mal que isso ocorra de maneira violenta e desleal, e isso o cristianismo soube fazer muito bem. Quando se fala em igreja santa e pecadora, essa parte corresponde ao pecadora. E o problema não é o excesso de zelo, e sim a crença de (espero que) alguns poucos cristãos em que todos à sua volta são obrigados a serem cristãos e a agirem como tal. Aí ao invés de zelar por si, às vezes acaba-se por zelar pelos outros, sem levar em conta a concordância deles em serem assim zelados.

Aí entra outro joio, ou pelo menos outra coisa que para mim é um mal recorrente. O cristianismo virou uma espécie de PMDB, sempre infiltrado no poder temporal. Certamente os fins do cristianismo são bem mais nobres do que os do PMDB, mas as consequências, se já são incômodas para quem não é cristão (pois muitas vezes precisam viver como se assim fossem), são ainda piores para o cristianismo. O cristianismo não deve ficar distante da vida e nem do poder político, como querem alguns. Mas também não pode cristianizar a sociedade à força de leis. Que o aborto, por exemplo, seja pecado, tudo bem. Mas impedir pecados, por piores que sejam, por meio de leis que afetam todos, cristãos e não-cristãos, é um tipo de opressão que Deus, por exemplo, não impôs às pessoas (porque Deus não endossa nem estimula pecados, mas os coíbe pedindo que não sejam cometidos, e não impedindo que sejam cometidos – mesmo que hajam penas temporais consequentes de pecados, a própria ocorrência destas penas atesta que Deus pede que não se peque, mas não impede que se peque). Longe de mim sugerir à Igreja que abandone seus meios de ação. Se as pessoas quiserem cristianizar os povos por meio de leis civis, por mim tudo bem. Mas é uma atitude estratégica e espiritualmente contraproducente. Defendo tanto o direito de quem não é cristão se debater contra a imposição de leis fundamentadas exclusivamente em critérios cristãos, quanto o direito de cristãos tentarem legalizar civilmente princípios religiosos (política é isso aí, diversos interesses em conflito), mas por mais que eu apoie os princípios cristãos, não aprovo que valham para todos por força de leis civis.

As duas modalidades de joio, o excesso de zelo e a infiltração no poder temporal, são na verdade duas coisas intrinsecamente ligadas, e não seriam, por si só, problemáticas. O problema consiste apenas na manifestação da tendência à oprimir os outros que, infelizmente, não é exclusiva do cristianismo (e também não é característica do cristianismo, só para esclarecer).

No fim das contas, o que matou Hipátia foi o bom e velho desprezo pela liberdade, que há anos mata mais por muito menos.


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