Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
Estou lendo, para um grupo de pesquisa, um livro chamado Modernidade Líquida. A idéia central do autor é identificar a modernidade pós-revolução industrial como uma sociedade cada vez mais "liquifeita". O liquido serve como metáfora que representa a enorme mobilidade, a velocidade das mudanças e transformações a que nos sujeitamos, em contraposição a um passado onde as mudanças eram lentas. Mas o principal não são as grandes mudanças históricas, e sim as "micro-mudanças", as relações interpessoais, sociais, trabalhistas, etc, todas elas pautadas pelo ritmo líquido da sociedade: o que vale para hoje pode não valer para amanhã, o que valia há duas horas atrás pode não valer agora - e se vale agora, pode não valer mais daqui a meia hora. Isso é menos o que diz o autor e mais aquilo que eu compreendo.
Mas eu sempre vi essa flexibilidade quase infinita da sociedade como algo inevitável, e também como alguém desejável: viva o tempo em que é possível a convivência entre pessoas, seja no mesmo prédio, na mesma rua, no mesmo bairro, com costumes e valores diferentes, em que as pessoas não precisam ser todas tão iguais umas às outras para conseguirem se relacionarem - se forem iguais, tudo bem, e se forem diferentes, não se parte do princípio que é melhor nem tentar. Eu não quero fazer um elogio à diferença, mas sim à mudança. Melhor um mundo onde tudo é questionável do que um mundo onde a lei e a ordem são os pilares inabaláveis da vida - às vezes às custas da própria vida.
Por isso sempre julguei que Modernidade Líquida fosse um chororô ultrapassado pela perda dos valores antigos, algo como minha vó dizendo que no tempo dela tudo era melhor e dando como exemplo o silêncio que todos faziam à mesa enquanto o pai e a mãe dela, ou algum convidado que fosse adulto, conversavam. Claro que tudo precisa de organização, de ordem, mas a ordem deve existir em função da vida, e não a vida em função da ordem e da lei. Enfim, me pareceu um livro chato e um autor chorão.
Agora, nada a ver com a pesquisa, estou relendo alguns livros de Marion Zimmer Bradley. Ela escreveu uma coleção com uns dez livros sobre um planeta chamado Darkover, que apesar de ser classificado, com muita justiça, aliás, como ficção científica, não deixa de ser, tanto quanto ficção científica, literatura, digamos, social. Não deve existir esse termo, mas é algo do tipo os romances de Sartre ou de Anaïs Nin, que tanto são literatura quanto análises sociais. São livros de ficção científica com todo direito a esta classificação, mas estão mais para A Náusea do que para Star Wars, digamos assim.
Dentro desta série, existem três livros que formam uma pequena sub-série , uma pequena trilogia dentro da série maior, que se encaixa dentro desta, mas também tem uma certa independência e dá para ler separada: A Corrente Partida, A Casa de Thendara e A Cidade da Magia. Como é sábado e eu estou com preguiça, não vou resumir os livros, mas, bem por cima, eles falam das Amazonas Livres de Darkover que, por meio de um juramento, comprometem-se entre si e para com todas as mulheres que necessitem, a apoiarem-se mutuamente. Como diz uma das personagens do livro, é uma descrição muito incompleta do que representa o juramento e a vida das Amazonas, mas se nem a personagem consegue explicar direito, eu também não vou tentar ir além.
Na história contada nesses três livros, uma das personagens, Magdalen Lorne, acaba sendo obrigada a fazer o juramento das Amazonas, que compromete quem jura a ser fiel às outras que fizeram o juramento e a todas as mulheres que precisem do seu suporte. Apesar de ter feito o juramento sob pressão (era jurar ou morrer), ela assume mesmo assim aquilo para com o qual se comprometeu, a ponto de ser oferecida a ela a oportunidade de desobrigar-se e ela negar essa desobrigação. Por causa desse juramento, em determinado ponto da história, ela se vê instada a ir atrás de uma das companheiras de juramento que seguiu grávida e emocionalmente abalada, à cavalo, em direção às perigosas e escuras florestas do planeta - e que fez isso em cumprimento da palavra empenhada também, diga-se de passagem.
Essa história, ou essa parte da história me fez entender, mais ou menos, a reclamação do autor do outro livro, Modernidade Líquida. Tudo, nessa modernidade líquida, se desfaz rapidamente, inclusive compromissos que seriam, a princípio, de longo prazo. "Longo prazo" para nós, hoje em dia, são dez anos. Ninguém mais garante a manutenção de nada por uma vida inteira, ou às custas do sacrifício de algum interesse posterior. O futuro é sempre desconhecido, e as pessoas, sem saber se no futuro virão fatores mais interessantes do que os atuais, comprometem-se, mas somente enquanto o ambiente for favorável à mantenção do compromisso. Se entrarem em cena coisas que tornem o compromisso inconveniente, o compromisso será o primeiro a ser sacrificado, como os peões no jogo de xadrez.
Eu não quero pregar um retorno aos casamentos até que a morte os separe e nem o fim da possibilidade de se revogar compromissos em geral. Mas, por exemplo, se antes um casamento nunca poderia ser dissolvido, hoje em dia ele já nasce dissolvido, quaisquer dez anos de namoro são comemorados como se valessem cinco vezes mais. Não quero que as pessoas parem de se separarem - especialmente porque isso foi um direito conquistado a duras penas - ou rebaixar coisas que durem cinco ou dez anos como coisinhas de nada. Mas se antes as pessoas eram obrigadas a se sacrificarem pela manutenção obrigatória do compromisso, hoje são obrigadas a se sacrificarem pela obrigação da mudança. Pulou-se de um extremo ao outro, da rigidez do compromisso ao total descomprometimento com tudo. Ou quase tudo, pois apenas os compromissos financeiros são devidamente respeitados, cobrados e exigidos. Então eu me corrijo: trocou-se a obrigação de respeitar qualquer compromisso pela obrigação de respeitar a eoconomia - tanto é assim que tudo bem se você jogar lixo no chão, vão lhe olhar de cara feia mas nada mais do que isso, mas se você experimentar atrasar uma parcela que seja daquilo que você comprou à prazo, foi para o SPC e adeus crédito. O crédito que predomina é o financeiro.
O meu problema não é com a economia ou com o dinheiro, mas sim com a falsidade da perspectiva de que vivemos mesmo em uma sociedade líquida (e acho que o autor de modernidade líquida vai dizer o mesmo, mas ainda não sei) . Não vivemos em uma era de mudanças rápidas e velozes, não vivemos em uma era de transformações e coisas assim coisa nenhuma! vivemos em uma era onde, como sempre foi, as pessoas continuam se sacrificando, literalmente se matando em prol de algum valor que não seja a vida, ou mesmo uma pessoa de quem se goste. Uma época era por Deus, depois pela honra e pelos costumes, depois a família, sei lá, mas hoje em dia é pela economia. Se antigamente chegava-se ao absurdo de uma mulher espancada pelo marido não ter o direito de se separar pela honra do compromisso, hoje em dia os netos dela precisam trabalhar 10 ou 12 horas por dia (sim, porque mesmo que você trabalhe 8 horas, tem uma hora de intervalo para o almoço, mais o tempo que você leva se deslocando entre sua casa e o trabalho, mais o tempo em que precisa dormir para ter condições de trabalhar no dia seguinte, etc), muitas vezes 6 dias por semana, somente para pagar contas.
Fundamentalismo por fundamentalismo, não estamos em condições melhores na modernidade do que nos primórdios do capitalismo e nem mesmo do que no período pré-capitalista.