Divagar divagarinho

Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
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10 de fevereiro de 2007

 

Slogan 3

Eu, que sempre reclamo de quem precisa se apoiar nos outros, faço o mesmo.
Pois, sem assunto que estou, dedico o meu tempo a esculhambar argumentos alheios contra o aborto. Claro, o aborto é uma questão muito mais profunda do que argumentação e contra-argumentação. É, muitas vezes, uma questão de sofrimento (ou de escolher qual sofrimento, enfim).
Mas estamos na internet, e, nesse espaço, não sei do que haveria de melhor para fazer.

Slogan 3: O feto é parte do corpo da mulher

Um slogan outrora vulgar mas hoje mais esquecido diz que: "O bebê faz parte do corpo da mulher. O aborto mata uma parte do corpo, um parasita."
Este slogan parece ter muitas falhas:

1. Com igual legitimidade se poderia dizer: "O bebê dentro da incubadora faz parte da incubadora. Matar o bebê dentro de uma incubadora é matar uma parte dela, matar um parasita".

2. "Um astronauta num foguetão é parte do foguetão. E como ele precisa do foguetão para sobreviver pode ser eliminado a gosto do dono do foguetão, tal como o bebê dentro do útero pode ser eliminado a gosto da dona do útero."

3. A questão é que uma pessoa não deixa de o ser pelo fato de estar dentro de um espaço limitado de alguma forma. O astronauta é uma pessoa e os seus direitos resultam disso. Como um astronauta não deixa de ser pessoa quando está no espaço, não perde por isso nenhum dos direitos das pessoas. Na lógica abortista, o bebê na incubadora é um ser humano pessoa e por isso não-executável. Os seus direitos resultam do que ele é e não do sítio onde está. O mesmo se aplica ao bebê não nascido: poderá ser morto pelo que é e não pelo sítio onde está. E o que é ele? E porque não tem ele direito à vida? Sobre isto o slogan diz nada.

4. Se levarmos uma célula da mãe e uma célula do filho a um especialista em genética, ele dir-nos-á, facilmente, que se trata de células de dois seres humanos diferentes. Convém repetir: não é a célula de uma pessoa e outra célula de um macaco, ou de um tumor, ou de um parasita. Tão pouco ele dirá que são duas células do mesmo ser humano. Nada disso: são as células de dois seres humanos diferentes. A gravidez é uma forma diferente de pegar num bebê ao colo. Pode-se pegar num bebê com os músculos dos braços ou com os músculos do abdomen. Pode-se alimentar o bebê ao peito ou por transferências através da placenta. Mas os músculos que sustentam o bebê ou o mecanismo físico que o permite alimentar, são eticamente irrelevantes. O que conta é o que ele é, e sobre isso o argumento diz nada.

5. As partes do corpo da mulher não têm todas o mesmo valor. Uma pessoa que corta as unhas a outra, dificilmente poderia ser punida por isso, e qualquer mulher pode pedir que lhe cortem as unhas; quem cortar um braço a outra pessoa poderá ou não ser punido por isso e, se houver necessidade, a mulher poderá pedir que lhe cortem o braço (para a curar de um tumor, por exemplo); é duvidoso que um médico possa cortar um braço, a pedido da mulher, sem que haja necessidade da amputação; quem tira o cérebro a uma mulher será punido de certeza, ainda que lho tenha tirado a pedido da vítima. Neste quadro, e ainda que se aceite que o bebê faz parte do corpo da mãe, onde se coloca o bebê? Será uma parte protegida ou será uma parte sem proteção? É uma das partes do corpo à disposição da mãe, uma das partes que ela pode pedir que lhe tirem sem problemas, ou é uma parte protegida que não pode ser tirada nem com o consentimento da mulher? Sem esclarecer estes pontos o slogan vale nada: limita-se a tentar iludir a questão sem lhe responder. Em primeiro lugar, reduz um ser humano à parte de outro; e depois sugere que a mulher pode dispor dessa parte com a liberdade com que dispõe das unhas. Ou seja, o slogan faz duas simplificações que não consegue provar.

6. Mas ainda que o bebê fosse parte do corpo da mulher, teria sempre de ser considerada uma parte muito especial: afinal nenhum rim, coração ou fígado salta para fora de uma pessoa e em poucos anos começa a escrever poemas. E será que esta diferença não torna o bebê diferente das unhas, do apêndice ou de um tumor?

7. Este argumento não permite justificar os abortos por cesariana, posto que neste caso se mata o bebê quando já não está ligado à mãe. Assim, teríamos o absurdo máximo: pode-se matar o bebê embora nem todos os métodos sejam aceitáveis. Ou seja, o direito à vida resulta não do que o bebê é mas da forma usada para o matar. Imagine o leitor que a sua vida só está protegida no caso de o matarem com um tiro; no caso de o matarem com uma faca, o leitor já não tem direito à vida nem a sua morte é crime. Uma teoria curiosa! E se há alguma forma de justificar o aborto por cesariana, porque não se usa esse argumento em vez de recorrer a "o bebê é parte do corpo da mãe"?

8. Se tudo que se disse está errado, se o bebê for mesmo parte do corpo da mãe, e se daí resulta que a mãe o pode matar, então pode-se abortar ao longo de toda a gravidez! Logo, ou o slogan está errado, ou o aborto é aceitável durante os nove meses. Então, porque se legaliza só até ás dez semanas? Com que base se nega ás mulheres um direito seu: o direito a abortar até aos nove meses?


Texto menos "malandro" do que o outro, mas que, mesmo assim, ainda tenta ter alguma ginga.
A idéia do "slogan" é que um feto é parte do corpo de uma mulher, e uma mulher pode dispor das partes do seu corpo como bem entender (isso me lembra duas músicas: uma eu não lembro de quem é, mas a letra é algo como "Se eu quero me estragar me estrago muito bem, se eu quero descansar descanso o que é que tem?, se eu quero me quebrar me quebro até cansar, se eu quero me mexer me mexo até a hora de parar", e uma outra da Simone que é mais ou menos "quero ser assim, senhora das minhas vontades e dona de mim" - me lembrei de outras músicas, mas nenhuma que tenha algo a ver com o texto...).

No início do texto, iguala-se essa idéia a coisas como "um bebê dentro da incubadora faz parte da incubadora" ou "um astronauta dentro de um foguete faz parte do foguete". Tosco.
Uma mulher não é uma incubadora e nem um foguete: primeiro, não conheço nenhums mulher construída pela NASA, e nem alguma que você possa ligar e desligar segundo suas conveniências (ou será que existem pessoas que desejam mulheres assim?); segundo, comparar um feto a um parasita não é degradante para o feto (olha a que ponto chegamos...). Caso o autor do texto não saiba, ele tem parasitas dentro do seu intestino sem os quais morreria.

Mas a questão central écaracterizar o feto como parte do corpo da mãe. E realmente ele faz parte do corpo da mãe. Qualquer pessoa adulta tem o seu corpo formado pelas coisas que come. Mas um feto forma-se a partir do material que retira do corpo da mãe - ou de onde mais as células que se reproduzem retirariam material para constituirem-se? A diferença do feto, como o texto bem coloca, é que o feto é uma parte que, se deixar, sai para fora e começa a desenvolver-se de maneira independente ("independente" em termos: eu, por exemplo, ainda preciso de ajuda financeira da minha mãe - atenção, isso é uma piada.) "Independente" porque, depois que desmama, o corpo do bebê se constitui a partir da comida que ele come, e não mais do sangue da mãe, ou do leite da mãe. Mas, dentro do útero, o feto depende do corpo da mãe.

Aí, o que este texto quer provar? Que um feto é uma parte do corpo de uma mulher do qual a mulher não dispõe como as outras partes. Com base em quê? Com base em que um feto é uma parte do corpo do qual a mulher não dispõe como as outras partes. Deu para entender?
É como se eu dissesse "você tem ir lá porque eu quero", e você me perguntasse "mas porque eu tenho que fazer o que você quer?" e eu respondesse "porque eu quero".

Santo Anselmo, antes de ser santo, foi filósofo. E uma das suas realizações foi ter concebido um argumento "infalível" para a existência de deus: deus é perfeito; um dos pré-requisitos básicos para que um ser seja perfeito é que ele exista; logo, deus existe e não pode não existir - do contrário, não seria perfeito. Acontece que, realmente, o pré-requisito para que algo seja perfeito é que esse algo existe. Mas só se diz que deus é perfeito porque se pressupõe que ele exista - e é isso que se quer provar. Primeiro deus tem que existir, para depois ser considerado perfeito.

O que o Santo Anselmo faz é deslocar a certeza: ele não tem mais certeza da existência de deus, mas tem certeza da perfeição de deus. Mas para ter certeza da perfeição de deus, é necessário que deus exista. Talvez fique melhor explicando de outra maneira. Eu estou, neste momento, comendo um Chandelle (é sério mesmo, estou comendo um Chandele. Só não ofereço porque não tem mais). Como eu posso saber que esse Chandelle existe? Não sei, eu não tenho mais certeza de que ele existe. Mas sei que é gostoso. Bom, mas um chandele, para que possa ser gostoso, tem que existir. Logo, eu tenho certeza de que o Chandele existe.

Essa é a esperteza do argumento teológico de Santo Anselmo: eu não sei se tal coisa existe, mas sua qualidade existe - logo, sei que a tal coisa existe.

A argumentação que o texto - sim, voltamos ao texto do "slogan" nº 9 - faz segue a mesma lógica: uma mulher não dispõe do feto dentro de seu corpo porque o feto não está a disposição da mulher como qualquer outra coisa em seu corpo. Porquê? Porque não é e ponto.

Aí ficamos assim: o texto bate o pé nesse ponto, e eu bato o pé que discordo.

Acontece que a gravidez, na sociedade humana, é uma situação que não tem paralelo em nenhuma outra situação. A comparação que o texto faz com o bebê na incubadora ou o astronauta dentro do foguete é tosca porque nada se compara a esta situação. Um feto é a única coisa dentro do corpo de qualquer pessoa que pode vir a se tornar gente.

A questão, aí, vira outra.

Uma gravidez é um fato sem paralelo algum, sem nada com o qual se possa comparar. Temos somente a situação em si: uma mulher carrega um possível ser humano ("possível" porque terá que, no mínimo, nascer). Mas vamos melhorar a situação para os pró-vida: vamos aceitar, por um momento, que o feto é tão gente quanto a gente - pessoalmente, não sei se é ou se não é, mas vamos considerar que sim. Bom, um feto é o único tipo de pessoa que depende de outra pessoa para sobreviver. É diferente de um filho de deszoito anos que não tem grana para pagar suas contas: um feto precisa de outra pessoa até mesmo para formar o seu corpo, precisa de outro corpo para retirar, deste corpo, material para si. E uma mulher grávida é o único tipo de pessoa que dispõe seu corpo para outra pessoa alimentar-se dele.

O que está em questão é: qual das duas vidas tem a preferência? Não é o mesmo que decidir a preferência entre uma pessoa e seu assassino em potencial, ou decidir se, em um prédio em chamas, vão ser salvas primeiro as mulheres ou as crianças. Se trata de uma pessoa que tem outra dentro de si. E qual dessas pessoas tem preferência?

Infelizmente, esse é o principal indício de que vivemos em uma sociedade machista. Quem tem a preferência, ainda, é o ser vivo dentro do corpo da mulher, e não o ser vivo que contém o feto.

Por mais que seja uma vida que está dentro de uma mulher, aquela vida ainda é uma semi-vida, porque a mulher é a condição para que aquela vida possa desenvolver-se. É o pré-requisito para que aquela vida possa desenvolver-se. Mas o fato de possuir essa capacidade, não obriga qualquer mulher a usá-la. O que a sociedade faz é privilegiar o feto em detrimento da mãe. Uma mulher é plena de direitos até que engravidade: grávida, seus direitos são menos importantes do que os do feto.

Este que é - e isso é uma opinião - o absurdo da proibição do aborto: você perde seus direitos automaticamente para outra pessoa. Os próvida, então, apelam emocionalmente: "pobre do feto, idefeso dentro da barriga de uma mulher". Mas esta é a condição de qualquer feto, ou, se se quiser, de qualquer ser humano nesta fase da vida: sua vida está sob total controle do corpo onde o seu próprio corpo se desenvolve.

Uma mulher não pressupõe necessariamente um bebê, mas um bebê pressupõe necessariamente uma mulher. E os próvida tentam, incessantemente, inverter essa lógica, dizendo que uma mulher pressupõe, necessariamente, um bebê!!! Eu não sei se é só para mim que fica claro que, assim, voltamos à condição da mulher como uma fábrica de bebês - ou seja, uma mulher somente tem valor na medida em que pode gerar crianças. É por isso que os fetos acabam tendo mais direitos do que as mães. É como se, ao ver uma mulher, as pessoas vissem somente bebês em potencial - ou como se uma mulher se resumisse aos seus óvulos e toda a coisa reprodutora associada.

Quando uma mulher quer abortar, trata-se de um conflito de quem tem mais direitos dobre o corpo da mãe: o feto (representado pela boa sociedade cristã que somos) ou a mulher?

A principal premissa, enfim, dos pró-vida da vida, é que o feto é uma pessoa. Mas eles esquecem que a mãe também é uma pessoa, e uma pessoa pressupõe um corpo, e, sobre um corpo, alguém tem poder. O que eu acho é que o poder sobre o corpo de uma mulher deveria ser não do feto (e, por extensão, de toda a sociedade, já que é a sociedade quem diz a uma mulher: "você não pode fazer isso!"), mas, sim, o poder sobre o corpo da mulher deveria ser da própria pessoa em questão.

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