Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
O cristianismo é uma religião em nome da qual já se fez muitas coisas boas e más (inclusive coisas suspeitas, que ainda não temos como saber se foram boas ou más).
Por isto mesmo é necessária a conversão do coração, que depende da interação entre Deus e o coração humano, pois sem isto até mesmo o "amai-vos uns aos outros" pode se traduzir em uma maldade.
Se até mesmo as mensagens mais explícitas ("amai-vos...") podem ser usadas para o mal, o que dirá Lc 16,1-8!
Um administrador desonesto (nas palavras de hoje: corrupto) é descoberto, ganha um aviso-prévio, e aproveita este tempo de aviso prévio para roubar ainda mais o patrão bajulando os credores dele. E o patrão ainda aplaude.
Jesus Cristo enlouqueceu nesta passagem! Ou Lucas esqueceu de acrescentar alguma coisa: uma reprimenda de Cristo ao administrador, uma recomendação de que não ajamos como ele, qualquer coisa!! Mas não, tudo o que Cristo tem a dizer é que os filhos deste mundo são mais prudentes no trato com seus semelhantes do que os filhos da luz.
Mas talvez a ideia seja ressaltar a predominância do bem. O administrador desonesto não deve ter conseguido muita coisa com a sua desonestidade, pois o patrão descobriu até este último ato (se o patrão elogiou a esperteza do administrador é porque deve ter descoberto, e embora talvez tenha deixado prá lá a fraude, porque teria demitido o administrador pra começar?)
Cristo não está dizendo "roube para fazer caridade com o dinheiro roubado", mas sim "trate bem os outros". A desonestidade do administrador fez mal a ele mesmo e fez bem aos outros.
Como mais adiante Cristo vai dizer que quem é infiel no pouco também será infiel no muito, pode-se supor que se um um bem resultante de um mal é elogiável, quanto melhor será um bem resultante de um bem.
Então o bem predomina, porque Deus é maior e mais forte do que o mal. Mas a máxima de que os fins não justificam os meios ainda vale: usar meios maus para resultar em um bem dá no mesmo que colocar barreiras à ação de Deus, o que não vai impedir Deus de usar até o mal para fazer resultar dele um bem, mas quem põe as barreiras arrisca o próprio pescoço. Agir contra Deus não vai impedir Deus mas vai prejudicar quem antagoniza Deus; agir a favor de Deus também não vai impedir Deus (é óbvio) mas vai ser benéfico para quem o ajuda: se até do mal Deus tira coisas boas, o que dirá do bem!
Não é necessário fazer o mal para tratar bem os outros. Mas se é possível fazer o bem com destrato (uma esmola dada de cara feia, por exemplo), o bem vai ficar ainda melhor feito com bom-trato.
(E eu tenho que voltar às aulas de português para relembrar as sutis diferenças entre bem e bom e entre mal e mau).
É possível dizer alguma coisa desta passagem do Evangelho além do que Cristo já disse, que é necessário o desapego a tudo aquilo que não seja o próprio Cristo para poder segui-lo?
Talvez menos importante seja uma reflexão sobre os dois exemplos de renúncia, do operário da torre e do rei ante uma ameaça de guerra.
Ambos estão a um passo do desconhecido: a torre não existe ainda, é só um projeto, e a guerra ainda não começou, embora o exército adversário já se aproxime. Diante dos dois há duas possibilidades: o sucesso e o fracasso. E eles têm a expectativa de sucesso, seja ver a torre construída, seja ver o exército inimigo derrotado.
Esta expectativa é posta em dúvida e ela que poderia ser ignorada por uma visão estreita ou pelo desejo imoderado de sucesso. Tal ignorância é um apego cego às próprias metas e objetivos no caso do operário e à vitória no caso rei.
Cristo aponta a necessidade de que os.dois verifiquem as condições de suas iniciativas para se certificarem de que não serão frustrados, pelo menos, por algo que poderia ter sido previsto se tivessem parado para refletir por um momento antes de se jogar à ação.
O operário da torre precisa considerar a possibilidade de não vê-la construída, talvez não agora, talvez nunca. O rei precisa considerar a possibilidade de não vencer e garantir a paz pela negociação diplomática. Os dois casos implicam renunciar aos projetos e objetivos muito importantes em prol de algo ainda mais.importante: a paz que vale mais.do que a vitória, e a aceitação dos próprios limites diante da falsa autosuficiencia.
O grande impasse em que este trecho do Evangelho nos coloca é: "mas como renunciar à família e à vida se ambas são importantes???" - lembrando que a própria Igreja ensina que a família e a vida são um projeto de Deus.
Estaríamos dentro de uma armadilha se não fosse Cristo. Pois estes - e todos os outros - projetos são pautados por Deus, e nós que tocamos estes projetos precisamos fazer isto seguindo Jesus e não os nossos narizes.
Aquilo de que nos desapegamos para seguir Jesus pode ser bom ou mau (e é bom no caso da família e da vida), e se nos apegamos em primeiro lugar a Cristo ("buscai primeiro o Reino de Deus") isso não significa jogar todo o resto no lixo. Significa, sim, relacionar-se com tudo (inclusive com a família e a própria vida) conforme as condições desejadas por Deus, e não conforme nossos próprios juízos e convicções.
Ressignificar tudo partindo de Deus implica em abandonar os próprios.valores e isto dói, mas valorizar as coisas a partir desta ressignificação fará delas o que sem Deus não poderíamos fazer: torná-las coisas divinas sem que deixem de ser, ao mesmo tempo, humanas.