Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!
Na primeira leitura, o segundo anjo diz, da parte de Deus, que a população precisa ficar sem muralha, e que Ele próprio será uma muralha de fogo em torno dela; e mais para o fim da leitura, afirma que habitará no meio dela.
No salmo se repete esta promessa de habitar no meio da população, quando diz que quem dispersou Israel vai congregá-lo, e o guardará qual pastor ao seu rebanho.
No Evangelho, Cristo anuncia que será entregue nas mãos dos homens, logo depois de lermos que todos estavam admirados com o que Jesus fazia.
A admiração do povo poderia levar os apóstolos a um triunfalismo, uma possibilidade que Jesus golpeia com o anúncio de sua morte. Anunciando previamente que iria morrer, Cristo fica sem muralha: ele deixa que o Senhor seja a sua muralha, como diz o segundo anjo na primeira leitura.
O possível triunfalismo é, se efetivado, uma tal muralha.
Talvez seja entregando-se assim a Deus, ao abrir mão das próprias muralhas e deixando que Deus seja a nossa proteção, que possamos nos abrir para que Deus nos guarde qual um pastor ao seu rebanho.
Quando o Papa Fransciso escreveu, antes do pontificado, que “… na
base de toda atitude corrupta há um cansaço de transcendência …
Esse seria um primeiro traço característico de toda corrupção: a
imanência.” (Bergoglio, 2013, p. 18) fui pego de surpresa.
Uma surpresa menor
do que teria sido há cinco ou dez anos atrás, é verdade; porque
faz algum tempo que venho desconfiando da imanência – se bem que,
há cinco ou dez anos atrás, esta surpresa se manifestaria como
revolta contra o impedimento à “chafurda na imanência”
(Beauvoir, 1967, p. 363) que, de qualquer modo, é tão nefasta
quanto a chafurdagem na transcendência (como a dos Essênios,
conforme o já mencionado texto do então cardeal Bergoglio: “Para
eles, os pecadores e o povo estão longe desse plano [a salvação e
a pertença ao grupo escolhido], são ineptos para engrossar esse
grupo”, p. 37).
Eu, que já fui um
“essênio” e corro o risco constante de voltar a sê-lo, aprendi
a desconfiar da transcendência ao me ver, ainda que
inconscientemente, refletido em personagens sectários ou
segregadores de qualquer natureza.
Como bem descreve o
Papa, embora ele se refira ao deslocamento da corrupção a um plano
diferente (do plano) do pudor e não ao fechar-se na transcendência,
esta “segregação essenista”, ao “ situar-se aquém da
transcendência, necessariamente vai além em sua pretensão e em sua
complacência” (Bergoglio, 2013, p. 30).
A desconfiança da
transcendência me levou à investigação da imanência, mesmo sem
saber seu nome e também sem um método constante ou definido, até
porque a imanência não carece de método para ser investigada,
basta observar o mundo ao redor. Ao se acrescentar a auto-observação,
temos todas as ferramentas necessárias para investigar bem a
imanência.
Se o encarceramento
na transcendência me levou a um perigoso dogmatismo inquisitorial
(sim, eu já cacei bruxas e só não as queimei por uma invisível
intervenção divina), o (imperceptível) encarceramento na imanência
me levou à beira da autodestruição – e aqui se repete o enredo
da citação do parágrafo anterior, agora no mesmo sentido que o
então cardeal Bergoglio escreveu.
Foi em Deleuze e,
por ele, em Espinosa, que eu aprendi a manter constantemente bem
fechada a imanência, embora um dia eu não tenha conseguido
“retornar do horizonte” (cf. Deleuze e Guatarri, 2000, p. 58),
não que eu estivesse preso a ele, mas sim no traçado do plano de
imanência e, mais especificamente, nos “meios pouco confessáveis,
pouco racionais e razoáveis … da ordem do sonho, dos processos
patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do
excesso.” (idem).
Uma amiga um dia
defendeu Foucault dos estruturalistas resumindo que, neste campo, ele
queria dizer que é impossível fugir da estrutura, explicando que,
segundo o filósofo, ao libertar-se de uma estrutura necessariamente
vai-se para outra (que, em comparação à anterior, pode não
parecer uma estrutura, porém de fato o é). Os santos talvez –
talvez! – digam que, perigo por perigo, é melhor prender-se e
perder-se na transcendência (como um Santo Agostinho alienando seu
filho da mãe pagã) do que na imanência (como um Deleuze se
suicidando, ao meu ver, qual uma eutanásia). Mas além de Santo
Agostinho e Deleuze, acho que há quem consiga manter a sanidade
dentro de um ou de outro sistema.
Eu, porém, corro
riscos em ambos os casos: seja caindo em buracos de imanência (como
Tales de Mileto, mesmo sem a sua genialidade) ao me fixar na
transcendência, seja me acomodando à imanência, uma vez dentro do
buraco.
Acredito que Cristo,
que afinal criou a imanência, quer elevá-la, devidamente
purificada, ao transcendental (muito além de Kant e independente de
qualquer gnosticismo, pois esta elevação acontece na Cruz). É isso
que eu posso entender de passagens como as descrições da Jerusalém
Celeste no Apocalipse ou da criação gemendo como que em dores de
parto em Rm 8, 22.
O alerta do Papa aos
perigos da imanência já havia sido dado por Deleuze (na página 58
de O que é a Filosofia), só que sem o resultado (a corrupção) e
sem o anúncio da libertação de Cristo, mas o Papa, melhor que
Deleuze, alerta também para os perigos de imanentizar a
transcendência (que foi o que Espinosa fez, não alertar o perigo,
mas fazer da imanência uma Ética) e talvez seja neste devir que eu
me situe agora.
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- Bergoglio, 2013: Bergoglio, J.M. Corrupção e Pecado. Editora Ave-Maria, 2013
- Beauvoir, 1967: Beuavoir, S. de. O Segundo Sexo (A Experiência Vivida). Gallimard, 1967.
- Deleuze e Guatarri, 2000: Deleuze, G. e Guatarri, F. O que é a Filosofia. Editora 34, 2000.